Marlon pode ser Sinatra, Elvis ou Cave, que nunca mais deixará de ser Marlon

Surgiu no início do ano, vindo do nada, e tornou-se uma estrela maior. 2018 é dele – ou pelo menos a noite de sábado foi-o.

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Marlon Williams DR

E então aconteceu: um foco de luz vermelha recortou a silhueta do homem abandonado no palco e o homem que naquele instante deveio filho ilegítimo de Sinatra — o mais belo filho ilegítimo de Sinatra — cantou Where can I go without your love?, enquanto em seu redor soavam coros espectrais. Era como se estivéssemos numa espécie de Las Vegas dos anos 50, só que em vez de roer as unhas na roletas ou esperar que nos saísse a carta certa, limitámo-nos a ver Marlon Williams sacar de todos os ases, enquanto fazia de cada canção um lugar para os desalojados do coração se aninharem e, de permeio, reescrevia todo o cânone do cancioneiro americano.

Que show, boa gente. Que show.

E então aconteceu e a partir daí não houve um tiro ao lado numa sequência infernal de canções não só absolutamente perfeitas como entregues numa intensidade diabólica, em que Marlon Williams foi, à vez, Sinatra, Elvis, Nick Cave e, sempre, Marlon Williams, autor do melhor disco do ano (Make Way for Love) e chefe de uma orquestra estupidamente oleada, como uma equipa de Sarri, o treinador do Chelsea, em dia de inspiração, como o metro de Tóquio em hora de ponta a uma segunda de manhã.

O que espantou, na noite de sábado em Lisboa, foi a facilidade com que Williams foi ao rock, à country, à folk, à pop, resgatou o registo crooner teatral ou enveredou pela balada ao piano, com uma facilidade danada, como se tudo isto fosse a mesma música, como se as ligações entre os géneros fossem óbvias.

Naquela sequência infernal de canções intensíssimas que começou com Lost without you (a terceira canção da noite), houve lugar a uma soberba Can I call you, a lembrar um Elvis de classe média, educado mas febril, que crescia com as vagas de tensão dos coros a três vozes em call and response; e, no espectro musical oposto, houve lugar à pop perfeita de guitarras de What’s chasing you, um pouco mais sexual e dançável do que no disco e com um extra de sujidade para dar requinte — endoidecendo o público.

Aquilo que no instante pareceu pura magia pode ser traduzido por um equilíbrio espantoso entre conhecimento extremo da “americana” e intensidade rockeira, sem nunca perder aquela qualidade de indagação existencial de canções que, na génese, são de corno amoroso. Era como se a The Band tivesse nascido hoje e, em vez de lidar com pobreza e alcoolismo, desse por si perdida, num mundo em que os amores são voláteis e não há wi-fi decente nas carruagens da CP.

De modo que na tremenda rockalhada de Waiting for you pensamos em Neil Young e nos Crazy Horse, com longos solos desaustinados de três notas a provocarem volutas de electricidade que provocam espasmos no corpo; de modo que Party boy, ao vivo, perde a qualidade sintética do álbum, mas ganha em rock, muito rock, muito suado, digno de um honky-tonk americano perdido na estrada; e em Vampire again — Marlon todo jogo de anca, ciente de ser o homem mais bonito do mundo — estamos perante Elvis, absolutamente lascivo, absolutamente explosivo.

E é por isso que faz sentido que Somebody’s baby, uma nova canção, dedicada aos filhos que ainda não tem, soe muito vaudeville, muito Elton John, muito Las Vegas, com alta guitarra slide — Marlon está a percorrer o cânone americano, o da canção clássica, sim, de Gershwin, de Sinatra, mas também o que vem das margens, de Hank Williams e Roy Orbison e Muddy Waters e Dylan. Está a unir as pontas, movido apenas a dor e showmanship e à medida que crescer (e Marlon vai crescer imenso) irá inevitavelmente parar à canção de charme luxuosa — o que explica a magnífica versão de Jealous guy com Ryan Downey, o convidado da primeira parte e coros.

Duas guitarras, bateria, baixo, teclas, violino e piano (que ressurge na lindíssima You got lucky): Marlon não precisa de mais que isto. Ou precisa: do passado, onde vai buscar Portrait of a man, de Screamin’ Jay Hawkins, para acabar uma noite imaculada, em que foi Sinatra, Elvis, Cave — mas acima de tudo foi Marlon Williams, autor do melhor disco do ano e artista prestes a explodir.

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