O que deve nortear a política económica em Portugal na próxima década? A descarbonização
Apenas um acordo de regime muito alargado poderá encurtar o mundo que separa as boas intenções da atual realidade política.
São cada vez mais frequentes as chamadas de atenção para a urgência de encontrar soluções para as alterações climáticas. Em setembro, o secretário-geral da ONU, António Guterres, alertou-nos para o facto de que os efeitos das alterações climáticas não só são perigosos, como se aproximam a um ritmo cada vez mais rápido, apelando, assim, a uma ação concertada para garantir um futuro sustentável para todos. “Precisamos de fazer mais, e precisamos de o fazer mais depressa”, salientou. Em outubro, foi tornado público o relatório do IPCC, o qual soou o alarme, assegurando que temos, o mais tardar, até 2030 para limitar os efeitos catastróficos das alterações climáticas. Apelou, ainda, à tomada de medidas urgentes e sem precedentes para garantir que o aquecimento global não exceda 1,5 graus até 2030. Para tal, será preciso reduzir, até essa data, as emissões de gases com efeito de estufa em 45%, quando comparados com os valores de 2010. Para lá chegar, garante o relatório, serão necessárias grandes mudanças no uso da terra, no funcionamento das cidades e, obviamente, nos setores da energia e da indústria.
Entretanto, e num universo paralelo, as emissões de CO2 no mundo terão aumentado 2,7% em 2018. Neste âmbito, a conferência da COP 24, reunida no início de dezembro em Katowice, Polónia, apenas veio tornar ainda mais claro o crescente abismo que separa a comunidade científica da sua congénere política no que toca ao reconhecimento da urgência em encontrar rapidamente soluções para as alterações climáticas. Exemplo disso foi a aprovação em Katowice, à última hora, de um conjunto de medidas de âmbito muito restrito e de ambição ainda mais modesta, certamente bem longe dos desígnios do relatório do IPCC.
Em Portugal, muitos dos objetivos, ideias e caminhos preconizados no relatório do IPCC tiveram eco no Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050, divulgado pelo Governo no início de dezembro. Este roteiro apresentou um vasto conjunto de informação que pretende servir como suporte técnico ao objetivo de atingir uma redução das ditas emissões até 2030, nos termos propostos pelo IPCC e de atingir a neutralidade carbónica da economia portuguesa até 2050.
Entretanto, e num universo paralelo, a vida política em Portugal foi novamente capturada nos últimos meses pela discussão do Orçamento do Estado para 2019. Foram inúmeros os debates, os confrontos de ideias, os desacordos e os inevitáveis entendimentos de bastidores. O que esteve totalmente ausente, contudo, foi a consideração do impacto ambiental das medidas em discussão. Por incrível que possa parecer, isto é verdade, mesmo em relação às questões que mais diretamente têm a ver com a questão das alterações climáticas. Por exemplo, que atenção foi dada ao impacto ambiental das mudanças no IVA que incide sobre a eletricidade? E das reduções no ISP? E o que dizer da ideia de aplicar a CESE ao setor produtor de energias renováveis? Infelizmente, a resposta é: zero. Assim, ficou demonstrado, também em Portugal, o enorme hiato que separa as proclamações de boas intenções e a efetiva tomada de medidas.
O mundo que separa as boas intenções dos atos é, em muito boa parte, determinado pela dimensão colossal do problema das alterações climáticas e pela inadequação das abordagens tipicamente preconizadas. Por um lado, fazendo face a um problema cuja dimensão é civilizacional, a reação individual de impotência e de inércia não nos deve surpreender. Por outro lado, as soluções muitas vezes preconizadas são baseadas num estrito voluntarismo (como por exemplo: “vamos comer menos carne, usar mais transportes públicos, ou preferir usar o estendal para secar a roupa, em vez de usar a máquina de secar”) e, por muito sentido que façam, em si mesmos, pecam ou por não serem postos na prática, ou por estarem completamente desajustadas à formidável dimensão do problema que juntos enfrentamos – seria como sugerir usar uma colher de chá para retirar a água numa casa depois de uma inundação: ajuda, mas de forma muito marginal. No outro extremo das soluções utilizadas, está a abordagem de política económica baseada na força bruta de políticas avulsas, em que os efeitos económicos e sociais adversos das políticas ambientais são assumidos como um dado adquirido e inevitável. Em Portugal, temos como exemplo o caso do fecho regulado até 2030 das centrais a carvão, cujos efeitos económicos adversos se farão sentir mais cedo ou mais tarde. A nível internacional temos como exemplo o aumento dos impostos sobre os combustíveis em França, justificados por razões ambientais e que degeneraram no fenómeno dos “coletes amarelos”. Em ambos os casos, não estão em causa os objetivos ambientais a atingir, mas sim a natureza avulsa, descoordenada e nada estratégica das medidas preconizadas. Ao não serem enquadradas numa política ambiental abrangente, não permitem incluir mecanismos para neutralizar os seus efeitos económicos e sociais adversos.
Estas observações levam-me a postular dois princípios estratégicos que julgo serem condições sine qua non para que haja alguma esperança que a questão das alterações climáticas venha a ser abordada atempada e adequadamente em Portugal.
O primeiro princípio é que a questão da descarbonização tem de ser assumida como um dos principais fatores estruturantes da política económica em Portugal para a próxima década. Nesse âmbito, todas as medidas de política económica têm de ser analisadas à luz dos seus impactos ambientais, i.e., é imprescindível tornar explícito como determinada medida de política ajudará ou dificultará a resolução da questão das alterações climáticas em Portugal. Para entender o que quero dizer, basta recordar a segunda metade dos anos 90 e como a questão do Euro funcionou como fator estruturante das nossas políticas económicas. Não houve medida de política económica que não fosse analisada à lupa de objetivos e indicadores monetários específicos. Que impacto teria no saldo orçamental? E nas taxas de juro? E na inflação? Do mesmo modo, na década 2020, na qual brevemente entraremos, tem de ser absolutamente natural filtrar os efeitos de políticas através dos seus impactos em termos dos objetivos e indicadores ambientais específicos. Que impacto terá nas emissões de gases de efeitos de estufa? E na eletrificação da economia? E no uso de energias renováveis? E na eficiência energética?
O segundo princípio é que a questão das alterações climáticas não pode ser abordada de forma avulsa. Só uma perspetiva abrangente pode permitir o desenho de políticas que, num contexto da mais estrita neutralidade orçamental, possam servir não apenas o ambiente, mas também o cidadão comum, pensando em mitigar eventuais efeitos adversos, não apenas em termos económicos, mas também em termos de justiça social. Só uma abordagem abrangente pode garantir a neutralidade orçamental das políticas, evitando assim a noção de que as políticas a favor do ambiente são apenas um agravamento (mais ou menos encapotado) da carga fiscal. Por exemplo, transformar o ISP num imposto sobre o CO2, num contexto de estrita neutralidade fiscal, é uma política muito mais eficaz para o ambiente e muito menos penalizadora tanto para a economia como para a justiça social do que simplesmente somar ao ISP mais um imposto sobre o carbono. Finalmente, só uma poítica abrangente num contexto de estrita neutralidade orçamental permite reduzir partes da carga fiscal que são particularmente gravosas. Por exemplo, a redução do IRS e do IRC, financiada pelas receitas de um imposto sobre o carbono, consistente com os objetivos de descarbonização para 2030 e 2050, tem um potencial não só para reduzir as emissões, mas também para melhorar o desempenho económico e o emprego, bem como para reduzir as desigualdades sociais.
Para terminar, apresento um corolário político dos dois princípios de política económica acima enunciados. A dimensão do problema das alterações climáticas, a necessidade de tornar a descarbonização no principal fator estruturante da política económica em Portugal e, ainda, a necessidade de políticas abrangentes e de reformas profundas do sistema fiscal todas sugerem que apenas um acordo de regime muito alargado entre os partidos políticos e a sociedade civil poderá encurtar o mundo que neste momento separa as boas intenções da atual realidade política. Os movimentos e as iniciativas que se preocupam especialmente com a justiça social, assim como as que se preocupam principalmente com questões de crescimento económico e de competitividade do nosso país, e ainda as que se preocupam particularmente com as questões ambientais, todas têm de ser ouvidas para juntas fazerem parte integrante do processo de decisão para chegar a uma solução duradoura do problema. Só assim seremos todos parte da solução do problema e não parte dos obstáculos a encontrá-la e a implementá-la. Só assim haverá o compromisso intra e intergeracional necessário para enfrentar este importante desafio que não se resolve nem de um dia para o outro, nem de um ano para o outro, nem mesmo de uma legislatura para outra. Vale a pena lembrar que, para encontrarmos verdadeiras soluções para o problema das alterações climáticas já em curso, não pode haver fraturas sociais – ou nos concertamos para consertar isto, ou então... Ou então teremos todos de viver numa realidade alternativa que, por ser tão inimaginável para nós neste momento, o melhor é ficarmos pelas reticências. O tempo urge!
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
Cidadania Social – Associação para a Intervenção e Reflexão de Políticas Sociais – www.cidadaniasocial.pt