E do meio do deserto veio quem cantasse a nossa vida
Há dez anos perguntávamos: “Quem é esta gente que entra de rompante pela nossa música adentro?”. Era uma revolução que começara no mais inesperado dos lugares, uma igreja protestante. Dez anos depois voltamos a olhar para esse momento fulcral da pop portuguesa. Dez anos depois ouvimos Tiago Cavaco, Samuel Úria, Manuel Fúria, João Coração, B Fachada e Jorge Cruz.
Agora é fácil, mesmo muito fácil, responder à pergunta que há dez anos surgia no tema de capa deste suplemento: “Quem é esta gente que entra de rompante pela nossa música adentro?” Oh, é o Samuel Úria, o B Fachada, o Tiago Guillul, os Diabo na Cruz, o Manuel Fúria, o saudoso João Coração. Fácil, não é?
Mas há dez anos não era tão simples — de repente, vindos do nada, alicerçados num par de editoras, a FlorCaveira e a Amor Fúria, eles desataram a lançar discos em barda: num curto intervalo de tempo houve IV, de Tiago Guillul, Sessão de Cezimbra, de João Coração, Magnífico Material Inútil, dos Pontos Negros, o EP Em Bruto, de Samuel Úria, o EP Viola Braguesa, de B Fachada; em breve viria Cruz Vermelha Sobre Fundo Branco, de Os Golpes, Virou!, dos Diabo na Cruz, Nem Lhe Tocava, a estreia de Úria no longa-duração com distribuição nacional e Muda que Muda, de João Coração.
E isto para não falar de uma série de outros músicos e bandas com afinidades, como os Feromona, os Capitães da Areia — em breve os Capitão Fausto, Severo, Sambado, tantos, todos. Mas na altura não era fácil: à superfície, no mainstream, nada disto existia e cantar em português descarado era anátema.
Citemos Jorge Cruz, o líder dos Diabo na Cruz: “O cenário na altura tinha menos potencial — agora quando surge um Conan Osiris ou o Severo ou o Sambado ou os Glockenwise ou os Ermo, quando este pessoal surge eu não fico nada surpreendido, estou à espera que surja gente que faz coisas que não são iguais às de ninguém.”
Mas na altura o cenário tinha mesmo menos potencial — e a revolução não era óbvia; como sempre, começou por baixo: na net (mais especificamente, no MySpace) e na rua (nos concertos). Correcção: a revolução começou pelo mais inesperado dos lugares, uma igreja em São Domingos de Benfica, onde Tiago Guillul era pastor protestante — e este pormenor, só por si, foi motivo de discussão acérrima durante meses a fio, quando esta malta se tornou popular (porque Portugal estranha tudo o que é novidade).
Gente religiosa, de direita, a rock’n’rollar: este era talvez o segmento sociológico de onde menos esperaríamos encontrar quem nos representasse — mas foi nesse meio que nasceu a FlorCaveira, a editora que está na génese deste agrupamento meteórico de mentes brilhantes que mudaram a forma como víamos a nossa pop.
Nem todos vieram a ser estrelas; alguns deixaram a música. É possível que nada tenha vindo a ser tão grande quanto se chegou a esperar. Mas pelo meio das pequenas zangas e dos grandes trambolhões houve uma data de grandes discos, mas, acima de tudo, um desempoeiramento abissal da arte de cantar em português. Que mais não seja, só pela quantidade de pessoas que passaram a fazer pop sem tretas esta foi uma partida ganha.
Dez anos depois voltamos a olhar para esse momento fulcral da pop portuguesa, que nos permite que hoje olhemos com naturalidade para Conan Osiris ou Severo.
Dez anos depois ouvimos Tiago Cavaco (aka Guillul), Samuel Úria (os Caveiras originais), Manuel Fúria (dos Golpes e hoje artista a solo) e João Coração (os fundadores da editora Amor Fúria), B Fachada e Jorge Cruz (Diabo na Cruz), os dois cometas.
Tiago Cavaco
É pastor protestante de uma comunidade de 150 pessoas na Lapa. Depois de IV continuou a gravar sob o nome Tiago Guillul — o seu nome em hebraico — mas de forma cada vez mais discreta. É o fundador da Flor Caveira, foi produtor, é escritor e pai de cinco filhos.
Na contra-capa da reedição de IV, o seu quarto disco enquanto Tiago Guillul, o pastor Tiago Cavaco confessa que quando gravava o disco, em 2007, em Moscavide, recebeu uma mensagem da esposa, Rute, a anunciar que estava grávida do quarto filho do casal. Tiago havia sido pai seis meses antes — o que significa que em 2008, ano do nascimento do quarto e de IV, teve “mais um parto: o do reconhecimento da música que fazia”.
Essa história — a do reconhecimento da música criada pelo eixo FlorCaveira/Amor Fúria começa com IV, mas o envolvimento dos seus protagonistas com o acto de criar vem de trás: de quartos em Santo Tirso a quartos em Tondela, passando por, no caso de Tiago Cavaco, garagens no Lumiar.
As primeiras incursões de Tiago pelo faz-tu-próprio da música remonta à adolescência, quando fundou uma banda de punk-harcore chamada Metanóia, que viria a ter outros nomes e dedicar-se a diferentes sonoridades: foram os Catacumba, os Bible Toon e, no final, na faculdade, quando já tinham “influência dos Heróis do Mar”, eram A Instituição, “banda muito influenciada pelo Pedro Aires Magalhães”.
Tiago e comparsas depositavam “uma certa esperança” na Instituição: “Falaram de nós no Blitz, sonhei que podia ser A Banda”. De modo que o fim da banda representou mais um momento de frustração na até então inexistente carreira musical de um rapaz suburbano e protestante que ainda não imaginava que viria a ser pastor e micro-estrela-pop; foi isso que o fez refugiar-se na criação da FlorCaveira.
Fazia discos a solo, discos com o Sami [petit nom de Samuel Úria], e tinha um vago plano estético: “Queria ter uma editora que tanto lançasse um disco folk como um disco punk-hardcore e mesmo assim fizesse sentido”; era a altura da ascensão das Antis deste mundo — havia um certo regresso à folk, ao som descarnado.
Aos 40 anos e com uma obra-prima como IV no CV consegue rir-se disto, mas na altura a ausência de ouvintes causava-lhe um certo desespero: “Todas as razões serviam para pôr a nossa música nas mãos das pessoas: quando casei dei uma prenda aos convidados que era um CD com três canções minhas”. A dada altura, começou a sonhar que “um dia um respigador musical” ia encontrar as suas canções. “Falo disso no Ouço Chamar o Meu Nome [canção de IV]”.
31 anos de falhanços criam o hábito de esperar mais falhanços: de modo que quando IV saiu e a imprensa pegou neles, os enfiou na capa e bateu palminhas ele “não estava à espera e houve muito deslumbramento [da sua parte]. Era miúdo, estava muito absorvido em mim mesmo. Passei a ser o tipo que pensava: já agora, se me descobriram não me importava que todos gostassem de mim”.
Houve um efeito de dominó de popularidade na imprensa — e “parecia que estava feito, que tínhamos conquistado tudo. O [Jorge] Cruz [dos Diabo na Cruz] viu mais longe e por isso chegou mais longe. Viu além porque já tinha levado pancada — a dimensão do sofrimento faz-te ver mais claro”.
Ver claro é coisa que o tempo permitiu a Tiago — e hoje ele percebe que na altura “era um campeão do ressentimento”, ao passo que Cruz “sabia que era preciso pegar na viola e tocar pelo país inteiro. Fui vê-los recentemente ao Coliseu e aquilo foi comovente para mim”.
Depois da febre da FlorCaveira passar — e hoje sabemos que foi um período intenso de apenas um ou dois anos — Tiago achou que tinha de se decidir: “Percebi que o que era na realidade era um pastor; um pastor que também fazia música”.
Houve, da sua parte, uma espécie de acto de sabotagem para com a sua carreira musical, ao ponto de ter rejeitado “seis auditórios, com bom cachet, porque o Guillul [o nome com que assinava os discos a solo] tinha de morrer”. As coisas foram tão intensas que em 2010 quis mesmo acabar com a editora, mas Sami, “que é mais calmo”, não deixou. Tiago continuou a fazer discos, “mas de forma irregular”.
As prioridades de Tiago alteraram-se: privilegiou a comunidade, a paróquia, em detrimento da música, que começou a parecer-lhe um elemento perturbador: “se tu patinas, os outros [da paróquia] também podem patinar a seguir”. Há uma espécie de mudança identitária, nisto: Tiago continuou a gostar da música que faz mas apercebeu-se que não era como os companheiros de editora que se tornaram músicos profissionais: “Nunca me iria aguentar. Não tenho a capacidade de fazer a minha música chegar a muita gente”.
A posteriori consegue perceber porque é que Fachada imprimiu uma marca, como é que o Manel [Fúria] consegue ser músico de profissão e ao mesmo tempo ser underdog — mas naquela altura não era fácil perceber isto. “Estávamos numa altura em que tudo podia acontecer. Um pastor rocker? Os Pontos Negros no Restelo com os Xutos? E em poucos anos já tinhas o Fachada como astro e os Pontos perderam o foco para os Capitão Fausto”.
Hoje as pessoas que seguem Tiago vivem no Brasil e seguem-no por causa dos seus livros de religião. Perdeu o público que o seguia há 10 anos, ganhou outro.
Sami
Samuel Úria tornou-se músico profissional e desde então já lançou dois longa-duração, além de escrever canções para outros e ser o gajo mais porreiro de Lisboa. Recentemente lançou o mini-álbum Marcha Atroz
Há dez anos e pico um rapaz desconhecido de Tondela, alto, com talento para o desenho e apaixonado pela NBA, resolveu ir morar para Lisboa porque estava farto de gastar dinheiro com a gasolina que pagava para dar concertos em Lisboa: “Eu dava aulas [de desenho] e só concorri para Lisboa porque queria que a música fosse um part-time mais barato”, recorda.
Por esses dias, e apesar de já ter um primeiro álbum pela FlorCaveira, de 2003 [O Caminho Ferroviário Estreito], sem distribuição, de estar a lançar o EP Em Bruto e ainda ter outras canções espalhadas por discos de bandas como os Velhas Glórias ou os Nininvitas, quase ninguém o conhecia.
Escassos meses depois o campeonato em que se movia era outro: a súbita explosão e exposição mediática da FlorCaveira “foi surpreendente, porque andávamos a brincar aos músicos há muito” e nunca haviam sido reconhecidos. Tinham a ideia de “continuar a fazer discos como tínhamos feito, até porque nenhuma editora nos tinha abordado” e, de repente, aquilo a que ele chama “a nossa discografia caseira” estava a ser ouvida por pessoas que não conheciam.
Não era assim, antes da explosão de 2008: “Havia uma espécie de circuito punk que passava pela garagem da Igreja de Queluz e nos escassos concertos em que havia bilheteira esta resumia-se aos amigos e a gente da igreja”. Com a net começou a aparecer gente que não conheciam — e depois houve aquela capa: “O que sentimos foi que a capa mudou-nos a nós, não aos ouvintes. Aquela capa legitimou uma sobranceria que tínhamos, em brincadeira: se Portugal não nos ouvia, então é porque não nos merecia. E ali deram-nos autoridade. Sentimo-nos legitimados para irmos para o palco, comportar-nos como estrelas de rock e mexer-nos como o Mick Jagger”.
As primeiras pessoas exteriores à religião protestante que ouviram os Caveiras “chegaram todas por causa do MySpace: foi com o Myspace que percebemos que havia correligionários que não conhecíamos pessoalmente”. O MySpace foi uma rede importante para os músicos em Portugal: “Houve uma avidez em fazermos coisas juntos, às vezes nem tanto pela música mas pelas pessoas — eram personalidades muito diferentes das nossas. Havia elementos de estranheza que essas pessoas traziam”.
Foi o MySpace que trouxe Fachada, Fúria, Coração, Cruz, que se juntaram às amizades antigas dos Caveiras e rapidamente se tornaram parte dessas amizades. De súbito o grupo de protestantes já não estava fechado num circuito religioso.
“O Fachada, quando apareceu entre nós”, conta Sami, “trouxe uma coisa importante, que era a competição, a picardia na criatividade. O Fachada tinha lata para dizer ‘Fizeste essa canção? Vou fazer uma muito melhor que a tua’. Ele estava à vontade para ser gozado e nós estávamos à vontade para ele refilar connosco”.
Sami, agora, é meia estrela pop. Já Jorge Cruz é uma estrela que enche Coliseus. Mas Sami recorda-se de ter ido ver um concerto de Cruz na Figueira da Foz, “sob nome dele, em que ele tocava material de Diabo na Cruz e estavam para aí 4 pessoas”. Depois Cruz “juntou malta que conheceu com a Flor Caveira, o Barata, o baterista do Coração e deu-lhe um lado rock anacrónico, Trovante em fixe” e foi o que foi.
O MySpace trouxe ouvintes e colegas músicos mas foi preciso mais que isso para a explosão — foi preciso dinheiro. E foi a Valentim de Carvalho que o trouxe: “Eles fizeram contratos connosco que são inacreditáveis — o próprio Francisco Vasconcellos [director da Valentim de Carvalho] não conseguia acreditar que tivessem assinado aquilo. Deixavam a FlorCaveira fazer discos, ficar com os masters e eles distribuíam e ainda faziam promoção e tinham contra-partidas pequeníssimas”.
A Valentim de Carvalho não pôs dinheiro na mão da FlorCaveira por amor à música: eles estavam interessados em Sami, que acreditavam poder explodir nas tabelas de vendas — e deram tudo o que a FlorCaveira quis, em troca de assinar o tondelense.
O acordo não foi feito no ar: a Consoada FlorCaveira, em Dezembro de 2008, encheu o Maxime e havia vídeos na net: “Isso passou a ideia de que podíamos ter sucesso”, conta Sami. “Isso acelerou a vontade da Valentim trabalhar connosco — eles agenciavam-nos e acho que queriam replicar o Maxime. Nessa altura vendiam-se menos discos do que antes e acho que eles achavam que o futuro estava no agencimento”.
Dez anos depois é fácil dizer que talvez pudessem ter tido todos maior sucesso — isto dando de barato que os Diabo na Cruz o alcançaram e “uma ou duas canções dos Golpes tiveram mesmo muito sucesso”. Mas eles estavam habituados a perder e só com IV, de Tiago Guilul, pensaram que “podia haver um espaço para um disco [deles] que ficasse na música portuguesa”.
Agora, Sami vive disto e há dez anos não achava que isso fosse possível: “Eu e o Cruz escrevemos para outros e mesmo malta mais nova, como o [Luís] Gravito e o Sambado, escrevem canções para outros. Inter-pares começou a haver respeito por nós, isso é inegável”.
Isto é “muito pouco romântico”, diz Sami, “mas quando uma coisa que sempre fiz por gosto consegue ser o meu sustento, o meu balanço só pode ser de extrema gratidão”. De modo que ele não consegue não sorrir ao pensar nestes dez anos.
João Coração
Chama-se Daniel Ruivo e é o autor de Sessão de Cezimbra e do genial Muda que Muda, que salvou o verão de 2009. Hoje é founder da Altar, empresa que se encarrega da transformação digital de bancos europeus, além de montar startups.
Uma equação possível para o sucesso da FlorCaveira incluiria a tarimba ganha pelos protestantes a tocar na missa mais o dinheiro da editora Valentim de Carvalho mais o encontro com os não-protestantes, promovido (entre aspas) pelo MySpace. Mas não foi o MySpace a facilitar o encontro entre os não-protestantes — algumas amizades já vinham de trás: “O Joca [como os amigos tratam Jorge Cruz] era o meu amigo da música em Aveiro [de onde Cruz é natural e onde Coração viveu]”, conta João Coração, autor da obra-prima que é Muda Que Muda; enquanto “o Manel [Fúria] tornara-se meu amigo anos antes da explosão de 2008 — tínhamos amigos beatos em comum e conhecemo-nos na escola de cinema, em 2003”.
Até então a FlorCaveira “era amigos, primos, irmãos, colegas de igreja — e isso mantém-se”. Mas o Manel tornou-se amigo do Tiago, Coração levou Jorge para encontros com esses dois e “houve mais gente a juntar-se, o Coelho Radioactivo e o Cão da Morte [hoje conhecido por Luís Severo, quando não é conhecido por Luís Gravito], que acompanhei nas primeiras canções: eles ficaram amigos para a vida e têm os Flamingos juntos”.
Antes do encontro havia a admiração: Coração via “os discos do Sami e do Tiago como tesouros escondidos”, tentou evangelizar os amigos e ficava boquiaberto quando as pessoas não percebiam. Era claro para Coração que “as pessoas não faziam a mínima ideia de que se faziam coisas assim em Portugal”.
Outro dos autores que admirava era o não-Caveira B Fachada, que editava na [editora online] Merzbau. Por instantes Coração fica na dúvida se o conheceu através da [fotógrafa] Vera Marmelo ou num concerto dele no Lux. Até que se recorda que foi na [extinta livraria] Trama, junto com Manel Dordio, e Benjamim, que viria a tocar nos seus discos e mais tarde se tornaria num belíssimo autor.
Mais tarde, quando estavam em casa de Coração a gravar um disco do [mui respeitável músico aveirense] Coelho Radioactivo, Coração sacou da sua braguesa, “que tocava com slide”, e Fachada foi a correr uma. Vem daí a génese do mítico Viola Braguesa, de B Fachada.
A gravação do primeiro disco de Sessão de Cezimbra, estreia de João Coração, é exemplar da ética FlorCaveira: “Eu queria uma coisa à Dylan; à Tiago Guillul”, conta Coração. De modo que gravou o disco num fim-de-semana e não mostrou nenhuma canção a ninguém antes.
Bernado [Fachada], Jorge Cruz, Tiago Guillul, Sami e outros juntaram-se em casa de Coração para jantar — e para se conhecerem, em alguns casos. Coração tinha os instrumentos espalhados pela sala, tocava a música uma vez, cada um escolhia um instrumento, Coração gravava o ensaio e “quando eles diziam estar preparados eu, que já tinha gravado um take, dizia ‘Ok, vamos para a próxima’. Eu queria captar a energia de descobrir a música; não queria tudo certinho”.
Influenciados por Tiago e Sami, Manuel Fúria, João Coração e Pedro “Almirante” Ramos resolveram criar a editora Amor Fúria, uma ideia de Manel — queriam fazer concertos e lançar discos em conjunto e na sequência destas movimentações “a FlorCaveira saiu da toca”: “Os Pontos Negros [que também eram da FlorCaveira] ganharam notoriedade ao passo que nós, da Amor Fúria, começámos a fazer barulho, porque o meu disco ia em breve ser o primeiro da Amor Fúria (acabou por não ser), e porque a Amor Fúria ia ser agência e editora”.
Nada nestas coisas costuma ser linear e Coração acabou por sair da Amor Fúria: “Levava aquilo muito a sério, e eles menos” e perguntou a Tiago “se não queria editar o disco”. Manuel Fúria ficou chateado. “Uma grande confusão”.
O que toda esta gente, protestante e não-protestante, tinha em comum “era querer fazer canções em português com mais verdade do que se ouvia na rádio”. Coração, nessa altura, achava que a única coisa que era preciso era “que Portugal ouvisse aquelas vozes todas — nunca tínhamos tido tantas vozes tão boas ao mesmo tempo”. Isso acabou por acontecer, mas numa escala menor do que esperava: “Eu achava que ia ser como o Tropicalismo no Brasil. E foi uma franja. Achava que ia ser mais universal, mais consensual. Não há desilusão, é o que é”.
Não houve Tropicalismo, e afirmar que houve um certo tuguismo soa a diminuir o que aconteceu — e o que aconteceu só aconteceu porque “o Tiago e o Sami aprenderam connosco a acreditar que podiam chegar a mais pessoas — estavam confortáveis com serem os maiores na sua família e fomos dizer-lhes que aquilo eram pérolas”.
Um disco parece ser consensual na tarefa de fazer esta malta acreditar que poderiam estar perto de uma revolução: IV, de Tiago Guillul. “O Tiago acreditou que íamos chegar a muita gente”, recorda Coração, mas “aquilo que parecia o início foi o início e o fim”.
Coração, cujo verdadeiro nome é Daniel Belo, é hoje empresário — a sua vida implica uma certa frieza, o que lhe permite olhar para a realidade sem romantismos: “Ainda poucas pessoas conhecem Samuel Úria. Experimenta perguntar aos teus colegas no trabalho quem é o B Fachada. Não chegámos a 5% da população portuguesa. O Jorge [Cruz] é diferente, na rádio e nos concertos, chega a muita gente. Todos os universitários conhecem e cantam Diabo na Cruz”.
Na torrente alucinada de edições e concertos da FlorCaveira e da Amor Fúria que durou de 2008 a 2010 houve um disco que fez a vez de cometa: Muda Que Muda, de João Coração. Disco de hiper-romantiscmo, repleto de sintetizadores marados, colocou-o num nicho, como um aparentado de Gainsbourg, um Mickael Carreira hipster. É a obra-prima pop que Portugal precisava para viver amores de Verão. E depois foi-se embora porque não há boas histórias sem drama e desaparecimentos.
“A dada altura tinha duas hipóteses”, confessa Coração: “Ou ia fazer outra coisa ou, se fizesse só música, dois ou três anos depois teria de estar a fazer música para fazer dinheiro e não a música que queria; e estava a fazer 3 mil euros por concerto — mas sabia que não ia durar”.
E foi embora. Porque, ironicamente, o homem que mais sabe de mercado não queria aturar o mercado: “Pelas regras do mercado eu tinha de fazer discos para ter concertos para ganhar dinheiro; e eu não queria isso. Portugal é muito pequeno e eu sabia que a música que eu queria fazer era de nicho”.
Coração tinha uma empresa de marketing e queria ter uma família. De modo que pensou “fazer canções mas de outra maneira — e voltar quando reformar-me”.
Hoje tem outra empresa — e uma família. Ainda sente que pode fazer música boa e verdadeira — mas não sabe se vai ser assim daqui a dez anos. “Tenho dezenas de músicas que nunca editei mas se fizesse agora um disco não era a ir ao baú, isso nunca seria um disco como os outros que fiz. As canções do Sessões de Sesimbra demorei tanto a compô-las como a tocá-las pela primeira vez. Isso tem uma energia que depois desaparece”.
É compreensível — mas os verões ficaram mais pobres.
Manuel Fúria
Se Tiago Cavaco é visto como a figura principal do movimento que leva à explosão da FlorCaveira no final de 2008, Manuel Fúria é o side-kick sem o qual nada teria acontecido, a vela do motor, o oxigénio do fósforo: sem a sua presença como conspirador, agente de talentos e, simplesmente, sonhador compulsivo, nunca esta malta se teria conhecido.
Na altura tinha 25 anos e estava a trabalhar no primeiro disco dos Golpes, estava a gravar o disco — que já tínhamos ouvido, e é por isso que ele surge naquela capa do Ípsilon.
“Lembro-me da confusão que esta capa criou”, recorda. ”Não é a capa, claro, era o facto de as pessoas não saberem quem éramos. Houve discussões absurdas, sobretudo na internet, mas isso não era problema daquele tempo — continuam a ser absurdas”.
O mundo não sabia quem era esta gente e não conseguia perceber a razão de colocar na capa pastores que andam de skate ou alucinados que fazem refrães sobre ter bolas para chutar. Entre eles “o sentimento geral era de frenesim e de entusiasmo — sentíamos que tínhamos capacidade de concretizar sonhos, de os ver a acontecer; andámos a acumular vontade de fazer coisas e de repente, por ter conhecido uma série de gente, e as coisas se terem alinhado, começaram a acontecer todas ao mesmo tempo”.
Esse período, na vida de Manuel Fúria, corresponde a um tempo entre final de 2007 e 2012, em que “andava numa nuvem, como que a pairar — tudo corria bem, era tudo bom, não tinha medo de nada. Era uma confiança absurda e que tinha correspondência na visibilidade e a tendência era crescer”. Mais tarde houve desilusões e quedas aparatosas — é o que a física ordena e o mundo deleita-se em fazer os humanos sentirem os efeitos da gravidade no destino.
Os Pontos Negros já passavam de vez em quando na Radar; mas era na internet que se conheciam as bandas e era no Myspace que andavam os músicos: “O lançamento do Magnífico Material Inútil [dos Pontos Negros, mais ou menos por esta altura, em finais de 2008] tinha uma fila a dobrar a esquina — é um concerto épico”.
Não foi caso único, atenção: “O concerto de lançamento do Cruz Vermelha Sobre Fundo Branco [o disco de estreia dos Golpes]”, recorda Manel, “quase era um motim, mas houve mais de cem pessoas que não puderam entrar”. É neste ponto que oferece uma simples e acertada explicação para tudo isto: “O que se passou é que havia uma geração que não tinha bandas suas — e de repente nós estávamos ali”.
Havia muita coisa a acontecer, porque nestes fenómenos há sempre muita coisa a acontecer, que inevitavelmente ficará esquecida, excepto na memória de Manuel Fúria: “De fora de Lisboa havia os Smix Smox Smux e os Salto, e isto não parava — éramos nós, depois os Velhos, os Capitães da Areia. Os Velhos pareciam que nos iam ultrapassar a todos. A malta queria rock’n’roll e nós estávamos a dar-lhes rock’n’roll do bom”.
Rewind: Manel havia começado a Amor Fúria, depois cruzou-se com Tiago Guilul e “é nessa altura que isto começa a acontecer a sério”. Na grupeta surge gente como Bernardo Barata, que mais tarde viria a ser o baixista de Diabo na Cruz — na altura era baixista dos Feromona.
A ideia inicial de Manuel Fúria, quando formou a Amor Fúria, era “fazer um grande evento”, com todas estas ovelhas tresmalhadas que finalmente descobriam pertencer a um só rebanho — dos que queriam fazer grande pop em português e sem pedir desculpa.
Mas secretamente imaginava “mais que isto”. “É um privilégio estar a sonhar coisas e vê-las a concretizar-se, de forma tão intensa. Em 2011 programámos [refere-se à Amor Fúria] um palco no Alive. Mas agora olho para o que alcançámos e acho que falhámos redondamente”. Há uma excepção, diz e “a excepção é o Cruz”.
Se há história de crença em si próprio é a de Manuel Cruz: quando é fundada a FlorCaveira ele “era porteiro de um bar, andava meio perdido”. Foi entre os Fúrias e os Caveiras, a produzir o primeiro discos dos Golpes, que encontrou um rumo novo. De onde decorre que para Manuel não há dúvidas: “De todos, ele é o grande vencedor — por este percurso e por ter criado uma banda que criou proporções de banda grande e que faz éne concertos por ano e cujos concertos são nos Coliseus. A grande banda popular é a dele — nem o Sami nem o Fachada conseguem ter o alcance que ele tem”.
Fúria, que agora actua a solo, não diminui o papel de Fachada, alguém que “influenciou uma geração porque desenvolveu uma maneira própria de cantar e produzir — e encontra-se isso nos miúdos mais novos e mais ninguém tem essa influência”. Mas como profissionais da música “não ficam os Pontos Negros, não ficam Os Velhos, não fica o Coração — da Amor Fúria fico só eu como músico”.
Em 2018, em Fevereiro, no programa da Antena 3 Carta Branca, houve uma reunião: “O Tiago, o Jorge Cruz, o Fachada, o Daniel, o Sami e eu reunimo-nos — já não estávamos juntos desde essa altura e teve piada, sabes? Porque teve um lado meio de mandarmos bocas, de picarmos, mas de rirmos todos”. Mantêm-se amigos — e é isso que retira desta aventura: “Há uma pessoa que ficou um amigo para sempre, o Tiago — é no encontro entre nós que começa isto tudo. E ficou um amigo para sempre”.
B Fachada
Está a gravar o seu regresso aos discos; entre EPs e discos conjuntos editou, desde 2007, cerca de 15 — é o que está na internet mas não se pode confiar em tudo que está na internet. É talvez o músico que mais influenciou a garotada que hoje faz canções
Se João Coração é o cometa deste movimento pela sua música, pelo seu humor, Bernardo Fachada é o alien: não é religioso, é (talvez) o menos comunitário, mas durante um breve período encontrou ali gente com o mesmo espírito. Durou um ano — depois foi à sua vida.
“Se bem me lembro”, recorda, antes de entrar em estúdio para a gravação de novo disco a solo, “eu surjo ali porque vou ao concerto do lançamento do IV e o Daniel [João Coração] reconheceu-me de uns vídeos e foi falar comigo”.
Nada disto (o encontro de gente tão diferente, a explosão da FlorCaveira) se deu por completo acaso, diz, com a lucidez que o tempo traz: “Havia uma maneira de tentar trabalhar um lugar que estava desocupado; queríamos criar uma canção que ainda não havia”.
Essa canção está, por exemplo, em Viola Braguesa, de 2008, e editado pela FlorCaveira — mas para Fachada o seu “caminho principal foi posterior à participação na FlorCaveira — ali houve uma explosão relativa: foi acima de tudo em Lisboa”. É muito claro para Bernardo que B Fachada [2009] é o disco que faz dele “profissional. É um facto. Mas também foi trabalhado para isso”.
Também acredita que apesar de a FlorCaveira ser uma comunidade, “cada um de nós tinha os seus objectivos e ambições, que eram muito diferentes: o Tiago estava interessado num caminho para a sua pesquisa moral, o Daniel explorava a cultura de um apaixonado, o Jorge queria explodir numa profissão na qual trabalhava há muito”.
Isso, diz, “reflecte-se na forma como as carreiras seguiram” e não era assim tão difícil de ver há dez anos: “O Jorge [Cruz] brincava muito com isto, já na altura tentava adivinhar quem ia sobreviver neste meio”.
Não era óbvio para Fachada que estivesse ali o seu passaporte para viver da música; mas “trabalhava muito e já então era evidente que se houvesse possibilidade de viver da música ia viver da música — isso há 10 anos já era óbvio”.
Fachada, e parafraseamos, chegou sozinho e continuou sozinho. Os discos que fez na FlorCaveira tiveram “um impacto muito baixo”, baixo até para a Flor Caveira. “Eu fui dos que teve menos impacto, enquanto estive ali”. A FlorCaveira, para ele, “foi um ano em dez — nunca gravei com eles, gravei sempre sozinho, por exemplo”.
A dissenção no olhar nota-se inclusive no acordo com a Valentim de Carvalho: “O Tiago fez o acordo e eu não estava interessado nisso, não estava interessado em abdicar do meu percurso, além de que estava interessado em concretizar formalmente coisas diferentes das deles”. Para Fachada, a diferença entre si e os restantes caveiras “não era ideológica — temos todos empatia para com a diferença, isso não era problema”. A diferença está na música: “Havia, ao início, uma ideia de música comum mas essa música comum nunca chegou a existir. Cada amigo foi fazer a sua música para o seu lado”. Note-se que não vê nisso um defeito: “Isso é bom, é melhor que todos soarem ao mesmo”. Não soam nem soaram porque “existia muita liberdade formal, ali, e nunca ninguém implicou comigo ou me disse o que devia fazer”.
Seja o balanço qual for, uma coisa é clara: cada um deixou a sua herança — ou, para citarmos Fachada: “Ajudámos a desbloquear qualquer coisa que estava encravada”. Fachada, artista do desbloqueio, não tem ilusões: “Se não fôssemos nós a fazê-lo seriam outros, mas havia uma questão com o indie tuga, que estava bloqueado. E nós desbloqueámos, se calhar até demais, se calhar estamos viciados na língua portuguesa, como se isso por si só fosse sinónimo de qualidade”.
Jorge Cruz
Jorge Cruz, o Pequeno Aquiles, é o líder dos Diabo na Cruz, que vão no quarto disco — Lebre é deste ano. Em 2019 comemoram-se dez anos de Virou!
Palavra de Manuel Fúria: quando Jorge Cruz foi convidado para produzir o disco de estreia dos Golpes, actividade que decorreu em 2017, estava meio perdido nesta coisa de ganhar a vida com a música. Tinha conhecido Manel tempos antes, quando ia mudar de casa: pedira ajuda a João Coração e este trouxera Manel, que lhe dissera: “Sabes que isto só se pede aos melhores amigos?”. Cruz sabe, mas por essa altura já levava uma vida de solitário no meio. Quando andava tudo a ouvir Nirvana ele fazia canções à The The; quando andava tudo a ouvir Pavement ele fazia canções à Will Oldham. Entre ele o espírito do tempo não havia (como dizia a poesia de uma célebre aplicação de telemóvel) match.
De modo que se entende bem que ele diga que quando começou a estar com o pessoal da FlorCaveira “aquilo era mesmo afinidade, vontade, paixão”. E acredita-se quando diz que “nunca [pensou] que estaria ali a chave” da sua carreira. Aliás, no início era “um pouco o velho do Restelo, a pôr água na fervura. Havia pessoas que achavam que o mundo ia mudar, com o que estávamos a fazer”.
O Joca entra pela mão do João Coração, conhece primeiro o Manel, e eles falam-lhe do Tiago e do Sami, mostram-lhe Fados do Apocalipse [disco de Tiago]. “E quando ouço aquilo faz-me lembrar uma fase minha de lo-fi, de dez anos antes. Honestamente não me parecia que a sociedade e os media fossem aceitar aquilo”. Estava numa fase de aperfeiçoar canções; via aquela despretensão como “algo que tinha abandonado. E ainda não tinha percebido que isso iria ser uma chave” para ele.
Mas há um momento de ignição, de clique: “Eu toco no Sessão de Cezimbra [estreia de João Coração] e toco no IV. De repente numa pausa do Sessão de Cezimbra o Tiago grava uma coisa dele e pede-me para o acompanhar e quando chego ao fim é mesmo à Dylan: eu digo ‘bora gravar’ e ele ‘Já tá gravado’ e ‘Amanhã é concerto, vais tocar’”.
Para Cruz, isto é “transformador, é quase psicoterapia, leva-te à razão fundamental pela qual começaste. Treino e jogo é a mesma coisa. Toda a vivência era sempre a fazer”.
Só depois é que começa a surgir o hype mas “o que foi influente para gajos como eu ou o Fachada, e isso marca o que fazemos, é essa constância de fazer, nem sequer pensar”.
Conheço Cruz de vista de Aveiro há 32 anos e já fazia música; parecia o líder de um movimento de um só. Não admira, portanto, que hoje diga que o que mexeu mais com ele “foi pertencer, nunca pensei encontrar pessoas com quem iria sentir pertença, sempre fui mais solitário”.
Ali encontrou meia dúzia de pessoas, “o Jónatas [Pires, dos Pontos Negros], o Daniel [Castro Ruivo aka João Coração], etc, uns dez, a fazerem canções novas todas as semanas, com referências comuns”. Zeca Afonso, obviamente, “não era nada consensual e para mim era muito importante, os GNR eram muito importantes para eles mas não para mim”; mas havia pontos comuns: “O Cash e o Dylan eram muito importantes para todos”. A questão da língua era só uma das questões.
O momento em que foram descobertos, Cruz descreve-o como “um arrastão” e isto pede contexto. “O cenário na altura tinha menos potencial — agora quando surge Conan Osiris ou o Severo ou o Sambado ou os Glockenwise ou os Ermo, quando este pessoal surge não fico nada surpreendido, estou à espera que surja gente que faz coisas que não são iguais a ninguém. E agora há condições mas na altura era complicado”.
Cruz e Fachada são amigos — note-se agora a diferença que há na forma como percepcionam a chegada da Valentim de Carvalho: “Quando chegou a Valentim [que assinou um acordo de edição com a FlorCaveira] pensei que era um milagre. O Tiago deixou-me fazer um disco, meti aquilo no MySpace; mal nós [Diabo na Cruz] lançámos a Dona Ligeirinha [primeiro single da banda] a coisa explode e dei 50 concertos pagos nesse ano”.
Imagino que Cruz tenha esperado uma vida inteira para dizer isto mas, caraças, se há alguém que merece dizê-lo é ele e é um prazer reproduzir estas palavras: “Enquanto vocês [refere-se aos jornalistas] estavam nos hypes, nós [Diabo na Cruz] estivemos um ano e meio a ensaiar a banda e a compor a Dona Ligeirinha”.
Foi “um milagre”. Foi “uma loucura”. Fizeram “palcos muito grandes”, acabaram a “fazer o Alive às 23 horas, a seguir aos TV On the Radio, que nos pediram t-shirts e adoraram”. Ao quarto concerto percebeu: “o nosso momento não ia acabar nunca, a banda não ia acabar nunca”.
Houve problemas, claro, e na feitura do segundo disco percebeu que “a banda estava a ficar uma banda normal, pop-rock” e teve “uma epifania”. Fachada saiu, “foi tudo muito conturbado”. Fachada, note-se, é a pessoa com quem Cruz teve “mais química a tocar até hoje”.
Dez anos depois sabe que houve em tudo uma certa dose de sorte, que surgiram no momento em que havia espaço: “Isto tudo coincidiu com uma crise na indústria, que já não conseguia impor a sua vontade, e nós tínhamos o MySpace e isso mostrava que tínhamos público”.
A atenção mediática tem os seus problemas e Cruz temeu “que com a chegada da imprensa se fosse perder o que tínhamos de mais bonito, porque iam ficar vaidosos, convencidos que tinham público e eram estrelas de rock e nada garantia que as pessoas estivessem no disco seguinte. Disse ao Tiago que eu e o Fachada íamos sobreviver, mas o resto não — e Diabo ainda não tinha lançado o disco”. Nessa viagem de carro Cruz rematou a Tiago: “agora era altura de fazer grandes discos”
De modo que fez, embora para Cruz, como aliás para todos os outros, “o IV seja o disco mais importante de todos, é o pré-explosão, mas já tem lá todos os ingredientes, o sentido de humor, as referências, o despretensiosismo, mas também aquela catchyness, o lado pop”.
Depois chegou a vida: Tiago faz mais um disco e torna-se pastor, Coração deixou de fazer discos; Manel começou a solo, Sami vai crescendo ao seu ritmo, os Pontos Negros acabaram. Fachada faz 12 discos e Diabo na Cruz está sempre a gravar e a tocar.
Nada disto teria acontecido se cada um dos lados (protestantes, católicos, ateus) não oferecesse algo em falta do lado de lá; Cruz acredita que “há um lado de auto-confiança neles [referindo-se à malta original da Flor Caveira], é uma cultura que é propícia ao sucesso, não tem a culpa e a vergonha do catolicismo. Eles quando apareceram publicamente não tiveram vergonha de dizer coisas de direita”.
Para Cruz o balanço destes dez anos, de todos estes encontros, é mesmo muito simples: “Pura magia e gratidão”.