Racismo: em defesa da culpa como emoção transformadora

Ao elevarmos a discussão do racismo a um patamar estrutural e sistémico, baixamos as defesas que enquanto brancos construímos sempre que o tema emerge, e deixamos de negar o que sabemos ser factual para não sentirmos a culpa do passado.

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João Coelho/LUSA

Numa cena da icónica mini-série Anjos na América (2003), Louis tentava obter a absolvição de um rabino por abandonar o seu companheiro após este contrair VIH e recebeu a desconcertante resposta: “Se te queres confessar, é melhor procurares um padre. Os católicos acreditam em perdão, os judeus em culpa.” A natureza polissémica deste diálogo serve-nos de ponto de partida para analisar a dificuldade generalizada – e contida no discurso lusotropicalista da identidade nacional – em identificar a génese e manutenção do racismo, manifesta na forma precipitada como sacudimos a culpa e a substituímos pelo delírio colectivo de que vivemos numa utopia sem cor.

Há dois aspectos que obstaculizam severamente a compreensão e resolução das desigualdades raciais. O primeiro prende-se com a dificuldade em compreender a diferença entre “preconceito racial” (atitude em relação a um grupo racial) e “racismo” (sistema político e social que hierarquiza diferentes grupos raciais no que diz respeito ao seu acesso a recursos e estruturas sociais). Daqui resulta um truísmo habitualmente atropelado: ainda que qualquer ser humano possa ter “preconceito racial”, não é logicamente possível afirmarmos a existência de um “racismo” contra brancos, na medida em que não há nenhuma estrutura política e social que posicione pessoas brancas em desvantagem pela sua branquitude (ver Tears We Cannot Stop, de Michael Eric Dyson, p. 44-124).

É certo que a nossa posição social resulta da intersecção de inúmeros aspectos das nossas identidades, nomeadamente a condição socioeconómica. Mas estaremos de acordo com a asserção de que o comportamento policial seria muito distinto ao deparar-se com um homem negro rico a tentar abrir o seu carro sem chave, e um homem branco pobre a fazer o mesmo. O segundo obstáculo é negar-se o racismo com a obviedade de que não existem raças, ignorando (por desconhecimento ou estratégia) que, ainda que a raça não seja uma realidade biológica, é, contudo, uma realidade social com impacto mensurável. 

A diferença entre o aspecto interpessoal do preconceito racial e a componente política e estrutural do racismo, assim como a distinção entre a sua realidade social e falsidade biológica, não é meramente um malabarismo conceptual, mas sim uma compreensão do fenómeno com impacto concreto na mudança social, na medida em que diminui a sobre-identificação com a culpa individual. Ao elevarmos a discussão do racismo a um patamar estrutural e sistémico, baixamos as defesas que enquanto brancos construímos sempre que o tema emerge, e deixamos de negar o que sabemos ser factual para não sentirmos a culpa do passado.

Mas nós precisamos dessa culpa. Porque, ainda que as soluções devam ser construídas com racionalidade, precisamos das emoções para motivar a acção. E, como nos sugere António Damásio, Robert Plutchik ou Jaak Panksepp, as emoções têm um fundamento evolutivo na motivação para a acção, sendo a culpa uma emoção particularmente relevante no contexto social na medida em que produz consciência da existência de injustiça, promovendo o comportamento cooperativo.

Nesse sentido, o objectivo não é sentirmos culpa individual quando usufruímos de um sistema económico e social construído aos ombros de pessoas racializadas, mas sim sentirmos culpa colectiva por serem precisamente os descendentes directos dessa população que continuam desproporcionalmente a ver o acesso a esses sistemas interdito. Como disse Baldwin, nós criámos este problema. Está na altura de o repararmos. 

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