Remodelar o espaço e renovar o guião: uma perspetiva, no presente, para o(s) museu(s)

É essencial que se aproveite a remodelação dos museus para renovar também os seus guiões, concebendo narrativas capazes de dialogar com a contemporaneidade, tornando-as também mais inclusivas em relação aos diversos tipos de públicos...

Tem sido notícia o encerramento do Museo Histórico Nacional do Chile. Uma decisão corajosa tomada pelo Ministério da Cultura do país andino e que reflete, sobretudo, uma visão de futuro em termos de políticas museológicas e culturais. Sabemos bem que não é fácil fechar um museu com tanta relevância histórica, deixando um vazio cultural de aproximadamente três anos, numa das zonas mais emblemáticas e turísticas da cidade de Santiago: a Plaza de Armas. Essa área do centro da capital chilena representa uma espécie de “distrito cultural de Belém” – se nos atrevermos a fazer uma comparação com o nosso país –, uma vez que o museu está praticamente ao lado da catedral da cidade, a pouca distância do edifício de La Moneda, da Igreja de São Francisco – a mais antiga de cidade –, do Museo Chileno de Arte Precolombino e de outros ex-libris turísticos da cidade.

Mas a que se deve o encerramento deste museu? A resposta é simples e assenta em dois fatores. O primeiro diz respeito à falta de condições do espaço: o edifício, de inícios do século XIX, praticamente não teve obras desde a última remodelação, em 1982, para a instalação da coleção histórica, proveniente do Castillo Hidalgo do Cerro de Santa Lucía. O segundo, relaciona-se com a narrativa museográfica que se mantem praticamente inalterada desde os tempos da ditadura militar de Augusto Pinochet. Este último fator é até, provavelmente, mais relevante que o primeiro. Desde inícios de 2000 que a narrativa histórica – o guião do museu – tem sido fortemente questionada por historiadores e museólogos, dando azo à escrita de artigos de jornais e até de papers académicos de investigadores nacionais e estrangeiros. Nos últimos tempos, o museu tinha-se tornado uma “ilha” no contexto chileno; numa altura em que a Mesa de Santiago do Chile, de 1972, voltou a ser recuperada e o país readquiriu o orgulho pelo seu pioneirismo museológico: é na referida mesa de trabalho do ICOM que surge o conceito de museu integrado na sociedade, ao serviço da mesma e contribuindo para o seu desenvolvimento. Com a ampliação do Museo Chileno de Arte Precolombino, com o surgimento do Museo de la Memoria y de los Derechos Humanos, com a dinâmica implementada no Centro Cultural de la Moneda e finalmente com a remodelação do Museo Nacional de Historia Natural, devido aos estragos do terremoto de 2010, o Museo Histórico Nacional ficou isolado. Deixou de haver espaço para um museu que narra a história de um país personalisticamente, através de retratos das “figuras” do período colonial e da república: todos brancos e todos homens, isto num país essencialmente mestiço, com populações indígenas ativas da Araucanía à Ilha da Páscoa e onde as mulheres tiveram um papel tão marcante na história, desde Inés de Suárez a Gabriela Mistral, sem esquecer Violeta Parra.

A pressão vinda de fora, das universidades, das comunidades e de certos agentes políticos, tornou-se cada vez mais intensa... a sua museografia “não se coaduna com os tempos atuais”, “agredia as comunidades de povos originários do Chile”, “não era inclusivo” e era “incapaz de narrar a diversidade e riqueza cultural do país”. Gradualmente, o museu foi obrigado a escutar as vozes vindas do exterior, abrindo-se a debates com académicos, museólogos nacionais e estrangeiros e, também, representantes das comunidades indígenas. Todos esses debates foram publicados e estão disponíveis na página web do museu, onde se encontra também o famoso texto El Museo Mestizo. Fundamentación Museológica y Disciplinar para el Cambio de Guión. Contudo, apesar das intenções, existia entre os colegas do museu e entre as autoridades um certo receio em fazer alterações de fundo: a coleção já tinha mais de um século e o edifício também não permitia grandes veleidades museográficas. Um estudo de Joseph Gómez Villar publicado na revista Museum Management and Curatorship, em 2018, indicava que a emoção mais frequente era o medo, medo de que ao mudar o guião atual se colocaria em causa o “orgulho nacional” e a sua mais “tradicional” exposição permanente. Nesse sentido, deve ser valorizado este “ato de coragem” de fechar, ampliar o espaço (mais 3500 m2) com uma nova e adjacente construção e, consequentemente, renovar o guião. Tudo isto numa legislatura que tem estado pautada, no âmbito cultural, pelos museus. Ora vejamos, a primeira ministra da Cultura, Alejandra Pérez Lecarós, “caiu” por causa do Museo Histórico Nacional, o segundo, Mauricio Rojas, por causa do Museo de la Memoria y de los Derechos Humanos e a terceira nomeação, Consuelo Valdés (atual ministra), é uma conhecida e experiente museóloga.

E em Portugal, é necessário fechar algum museu nacional para renovar as infraestruturas e o guião? São conhecidas as fragilidades de certos museus e monumentos nacionais. A realidade já foi assumida publicamente pelos diretores dos museus nacionais, sinalizando que estes não apresentam as condições necessárias para o seu devido funcionamento: falta de funcionários, reservas e laboratórios antiquados, narrativa museográfica a precisar de atualização... É preciso agora definir prioridades, fazer escolhas. O caso chileno parece-nos interessante pois conjuga a remodelação do espaço com a renovação do guião. Esta “estratégia” parece ser a ideal já que integra vários princípios; permite garantir melhores condições às coleções e ao espaço que as guarda (o museu) e também atualizar e adequar o seu guião à sociedade contemporânea. É essencial que se aproveite a remodelação dos museus para renovar também os seus guiões, concebendo narrativas capazes de dialogar com a contemporaneidade, tornando-as também mais inclusivas em relação aos diversos tipos de públicos... A ausência de planificação, no nosso país, já tinha sido anteriormente debatida aquando da abertura do novo Museu dos Coches; um enorme investimento por parte do Estado mas que não contemplou a narrativa museográfica – veja-se, por exemplo, o que Raquel Henriques da Silva escreveu, na altura, sobre o referido museu. No mesmo texto, a conhecida historiadora da arte indicava também quais eram, no seu entender, os museus nacionais com maiores fragilidades e a necessitar de maior apoio por parte do Estado, referindo-se sobretudo a questões de infraestrutura: o Museu Nacional de Arqueologia e o Museu Nacional do Azulejo.

Para concluir, parece-me importante, sobre este assunto, regressar à América Latina. Chegaram-nos, recentemente, notícias do Brasil, um país mais próximo devido à afinidade linguística. Através delas, assistimos com consternação ao incêndio e destruição do Museu Nacional, no Rio de Janeiro; três anos antes, tinha sido o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. Atualmente, no Brasil, dois dos seus museus mais emblemáticos estão encerrados, os motivos são diferentes dos que levaram ao fecho do Museo Histórico Nacional, no Chile, mas pelas piores razões. No entanto, não nos devemos esquecer que o Brasil até tem um bom Instituto de Museus, o IBRAM. Mas será suficiente? Sem um investimento contínuo por parte do Estado ou até dos privados, qualquer política, por melhor que seja, tende a cair em saco roto: os museus precisam de um acompanhamento constante por parte das autoridades, mas este raramente ocorre, por falta de meios ou até de vontade. Por vezes chegamos a um extremo tal que se torna inevitável dar um passo atrás – fechar o museu – para poder dar um passo em frente – reabri-lo em condições, evitar a catástrofe, que tanto pode advir das condições do espaço como da ausência de recursos humanos qualificados. Urge renovar, mas com critério, pois, como se sabe, fechar um museu para renovação implica trabalho, muito trabalho: obras, remover coleções, acondicioná-las em novos locais, contratar empresas de transporte, criar novas narrativas, introdução de novos objetos, novos catálogos... acima de tudo, um forte investimento monetário e humano. Enfim, tudo isso deve ser pensado, ponderado, no presente, antes de se iniciar o eventual processo de encerramento temporário. Vale a pena tanto esforço? Depende do tipo de expectativas das gentes e dos agentes e, também, da sua paciência para esperar pelo futuro.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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