António Sá foi para Trás-os-Montes “ganhar metade, viver o dobro”

Sabia que um dia iria viver para o campo. Mas, em vez de esperar pela reforma, decidiu antecipar-se. Há quase nove anos que vive às portas de Bragança e guia quem quer descobrir a região ao ritmo das estações.

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Poucos dias depois de termos estado com António Sá em Lagomar, no início de Abril, nevou, conta-nos, por e-mail. Havíamos falado dessa possibilidade, num dia ensolarado em que nas traseiras da sua casa até se viam indícios de uma Primavera adiantada. Aproveitou uma das manhãs de neve e foi com a mulher, Ana Pedrosa, e a cadela, Ginny, à serra da Nogueira dar um passeio na neve. “Estava lindo…”, escreveu, “os bosques, de carvalhos, pinheiros silvestres e bétulas, mais a temperatura de apenas 3 graus, transportaram-nos momentaneamente para latitudes escandinavas. Não vimos animais, mas os rastos na neve eram muitos: corços, javalis e um texugo...”.

Foi por momentos assim que António Sá, com a mulher e os dois filhos pequenos, trocou Espinho por uma aldeia transmontana. Passaram oito anos e meio, os filhos já não são tão pequenos (a mais velha tem 18 anos), a certeza continua inabalável – “Já não saímos de cá”, afirma, “cada ano gostamos mais”. E não se cansa de partilhar essa sua paixão por estas vivências em Trás-os-Montes. Como a daquela manhã nevada em família: é uma das suas sugestões para os passeios que organiza – tanto em programas previamente delineados que vão mudando com as estações do ano, como nas experiências personalizadas a que chama Bétula Tours.

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O que propõe aos visitantes é tudo o que o levou a mudar-se para Lagomar, às portas de Bragança. Na Primavera, poder subir às alturas da serra de Montesinho e ver a paisagem pintada de amarelos, brancos e lilases por um mar de carquejas, urzes e giestas, salpicados de violetas, orquídeas e narcisos. No Verão, “sem hesitações”, percorrer os rios da região – “Gosto de variar. Uns dias, o rio Baceiro, que é mais próximo da minha casa, outros o Sabor ou o Tuela, já no concelho de Vinhais”. No Outono, passear por carvalhais e soutos, na serra da Nogueira e na zona central do Parque Natural de Montesinho, vestidos de amarelos e dourados, laranjas e vermelhos. “É a estação dos bosques.”

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Este compasso do ano com as quatro estações bem vincadas foi um dos motivos para António virar costas ao litoral e mudar-se para aqui, entre floresta autóctone e vida selvagem. Literalmente: a casa aninha-se numa encosta suave, que termina em lameiro, diante de montes coroados de carvalhais e sardoais; não raras vezes observou corços e javalis ali no quintal. Soube que era aqui que queria ficar precisamente num Outono, quando, ao fazer uma curva da estrada, se deparou com o vale pintado de amarelo e laranjas. “Parecia o Canadá.” No bolso levava um dos seus inseparáveis blocos de notas (vermelhos, flexíveis, os mesmos onde anota listas de fotografias e impressões de viagem – é fotógrafo profissional, muitos anos dedicados às viagens) com os 10 requisitos do terreno ideal. Preencheu nove deles, confessa, sorrindo, enquanto olhamos o cenário que entra escritório adentro pela parede envidraçada.

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Às portas de Bragança (a 15 minutos de carro e com transportes públicos regulares), dentro de uma aldeia e já dentro do Parque Natural de Montesinho (dois dos requisitos), António Sá e a família não mudaram de vida, diz Ana Pedrosa, a mulher e cúmplice dos caminhos do mundo. “Mudámos de vista.” Porque, de resto, continuam a trabalhar em casa, como já o faziam em Espinho desde que, António primeiro (em 1995, aos 26 anos), e Ana depois (em 1998), trocaram os empregos “fixos” pela ânsia de descobrir e dar a descobrir o mundo.

António já era um naturalista amador e um apaixonado pela fotografia (aos 11 anos recebeu a primeira máquina), com a qual foi autodidacta, e em pleno boom das revistas (e secções em várias publicações) de viagens decidiu arriscar e tornar-se repórter freelancer. Correu tão bem que Ana se lhe juntou: do Bornéu à Islândia, da Namíbia ao Alaska, passando pela Mongólia e a inesquecível China (“provavelmente a única viagem em que não foi a natureza, mas sim a etnografia, que nos chamou”), viajaram um pouco por todo o mundo – “não contamos os países”, afirma António, “não é o que nos interessa”. “Se gostamos de um lugar voltamos, nem que sejam dez vezes” –, (d)escrevendo-o e fotografando-o.

E tudo havia começado, precisamente, em Trás-os-Montes, local das suas primeiras férias juntos. A partir de então, começaram a escapar regularmente para a região; não tardaria a surgir o projecto de “um dia” virem para o campo – “como tantos pensam, para a reforma”. Até António se antecipar: “E se fosse agora?”. Havia, entretanto, começado a dar workshops de fotografia (em Lisboa e Porto) e a fazer passeios fotográficos, tantos deles em Trás-os-Montes. As viagens continuavam, ainda que balizadas pelas férias escolares dos filhos que também haviam chegado – “viajamos sempre com eles” –, e na região até podiam optar por saídas do Porto ou de Madrid.

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Passados quase nove anos em Lagomar, António prepara-se para juntar o alojamento à sua oferta de passeios e workshops de fotografia. “Queremos que as pessoas conheçam o território”, justifica, “e não tem de ser connosco”. “A ideia é que funcione quase como um abrigo-de-montanha, para quem gosta de andar no campo.” Faltam os acabamentos finais aos bungalows, quatro, que se erguem no mesmo terreno onde construiu a sua casa (esta e eles obedecendo a vários preceitos que asseguram a maior sustentabilidade possível: isolamento térmico, painéis solares, depósitos de água, por exemplo).

E onde, então, apenas um dos seus requisitos não se cumpriu: ter um curso de água a cruzá-lo. As fotografias de família em rios da região mostram que não faz falta e que o que ouvira anos antes num encontro fortuito com alguém que trocara o Porto pela serra do Alvão valeu a pena. “Ganhar metade, viver o dobro”.

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