Visto de Portalegre
Indigna ver este arrastado fenómeno no interior de Portugal, que toca de forma particularmente severa estas terras. Portalegre não é caso único, mas é a evidência mais séria do problema.
A parte mais importante dos discursos de João Miguel Tavares, responsável pelas comemorações do Dia de Portugal e de Camões, é aquela que não foi comentada – excepto pela também magnífica Carta Aberta que lhe dirigiu Ruy Ventura, com comovida gratidão. Foi a parte sobre Portalegre de um discurso feito em Portalegre por um cronista nacional natural de Portalegre. Ruy Ventura, também portalegrense, antes de reflectir sobre outros problemas sociais, agradeceu-lhe com esta franqueza: “ao ter contido com alguma dificuldade as lágrimas quando te ouvi mencionar o destino de tantos portalegrenses que, para cumprirem o seu destino, se viram obrigados a deixar o nosso concelho.”
Conheço bem todo o país e conheço bem o distrito de Portalegre. É o caso mais grave de despovoamento e de declínio no país. Indigna ver este arrastado fenómeno no interior de Portugal, que toca de forma particularmente severa estas terras. Portalegre não é caso único, mas é a evidência mais séria do problema.
Conheci Portalegre aos seis anos de idade, com meus pais. Fui ver, agora, quantos lá havia: no distrito, em 1960, eram quase 190 mil habitantes; no concelho da cidade, 28.300. Agora, vivem cerca de 22.000 no concelho da capital (uma quebra de 22%) e 105 mil no distrito (uma quebra de 45%). Isto é, no tempo da minha vida, o Alto Alentejo perdeu metade da população!
Tenho sido testemunha desta realidade inquietante. Entre as actividades que lá desenvolvi em épocas diferentes, fui cabeça-de-lista em Portalegre, nas legislativas de 2002 e 2005. Não havia hipótese de eleição – foi serviço cívico. Fiz bons amigos, fiquei ligado, levei a tarefa a sério: andei semanas em campanha por todo o distrito, que visitei também entre eleições. No intervalo, voltava apenas a Portalegre e a Elvas. Quando chegaram as eleições de 2005 e tornei a andar por todo o lado, senti, à vista, a quebra de população em vários locais, no espaço de apenas três anos. É um território que se vai esvaindo a olhos vistos.
Mais tarde, entre 2005 e 2007, procurei pôr este problema na agenda, organizando as Jornadas do Interior em diferentes cidades da raia, num roteiro que começou em Portalegre. Procurei afirmar uma linha política para responder de forma continuada e eficaz a esta decadência. Mas o país não está para aí virado. Fala, embora pouco. E fazer... nada.
O problema é sobretudo político. Há décadas que não temos adequadas políticas de território; e agora que, além dessas, precisamos já de políticas de povoamento, também não há. Nem sombra de umas, nem vestígio de outras. Um deserto de políticas públicas capazes, para arrancar o interior da rampa inclinada para onde o empurrámos.
Em territórios iguais, ali ao lado na Extremadura espanhola, a realidade é diferente. A cidade de Badajoz tem 150 mil habitantes, muito mais que todo o distrito de Portalegre. Cáceres, em contexto mais difícil, consegue ter quase tanto como o distrito e faz mais de quatro vezes a cidade de Portalegre: 96.068 habitantes em 2018. Em 1960, quando também fui a Badajoz pela primeira vez, a cidade (fui ver agora) tinha 96.317 habitantes – ou seja, até hoje, cresceu 36%, enquanto Portalegre caía 22%. A Extremadura espanhola sofreu também quebras demográficas a partir dos anos 1960. Mas, na província de Cáceres, a quebra foi travada em 1981 e, na província de Badajoz, não só foi travada, mas ainda revertida: voltou a subir a partir de 1981. Para isto, alguma coisa foi feita certamente. Várias coisas. Políticas públicas.
Em Portugal, nada. Ou melhor, o pouco que havia foi desfeito. Até 1976, a divisão administrativa intermédia do continente assentava nos distritos: uma rede de 18 cidades que polarizavam equilibradamente a malha territorial da administração – Portalegre era uma dessas 18 cidades. Esses distritos eram, ao mesmo tempo, circunscrição administrativa (onde estava o governador civil) e autarquia local (cujos órgãos mal se viam, porque o regime era autoritário). A generalidade dos serviços públicos estava desconcentrada por direcções distritais, o que lhes dava proximidade às populações e, a estas, alguma influência local. As regiões administrativas da Constituição acabaram por funcionar ao contrário do previsto, gerando uma centralização absurda. Por um lado, não foram estabelecidas; e, por outro, foram desmantelados os distritos, ao arrepio do que estipula o art.º 291º da Constituição. A generalidade dos serviços da Administração Central foi concentrada das 18 cidades em apenas cinco sedes regionais, ao mesmo tempo que o prometido patamar autárquico intermédio nunca foi criado. O resultado é que aquelas cidades – e os territórios que delas são tributários – perderam proximidade e influência, poder administrativo. Todas se ressentiram, mas algumas ressentiram-se mais: Bragança, Guarda, Portalegre e Beja. Podemos dizer que estes territórios foram abandonados. Por isso, não deve surpreender-nos aquilo que lhes tem acontecido.
Todos somos geocêntricos: vemos a Terra à nossa volta. Costumo chamar a atenção para os mapa-múndi que vemos nas escolas. Na minha escola primária, aprendi que o mundo tinha a Europa no centro (a África em baixo, também), as Américas à esquerda e a Ásia à direita. Na América, as crianças aprendem que as Américas estão ao centro, com a Ásia à esquerda e a Europa e África à direita; e, na China, as crianças vêem a Ásia ao centro, a Europa e África à esquerda e as Américas à direita.
Para boa Administração do país e definição ajustada e equilibrada das políticas públicas, é fundamental ter a pluralidade indispensável dos olhares – e de patamares de reflexão territoriais. Destruímos os 18 pólos que existiam e criámos um caos incompetente. Acredito que não foi uma conspiração sórdida contra o interior; o sucessivo desmantelamento da malha distrital (contra a Constituição) foi sendo feito no pressuposto de as regiões virem logo a seguir – ou outra coisa. Mas isso não aconteceu. O resultado foi a catástrofe centralizadora que vemos.
É prioritário e urgente atacar esta enfermidade e inverter o curso das coisas, quanto mais não seja, repondo a rede distrital e regressando à casa da partida. Precisamos de pólos administrativos, próximos e influentes, nas capitais de distrito, como Portalegre. Ninguém quer viver onde nada de relevante se decide e todos emigram para os sítios onde realmente se decide.
É necessário atrair grandes investimentos produtivos que invertam radicalmente a realidade económica e demográfica desses deprimidos territórios de alto potencial. Já o tenho escrito: dois destes investimentos deviam ser sedeados no eixo da Guarda e no de Portalegre. Daí irradiariam facilmente para todo o restante interior (a Norte, ao Centro e a Sul) e teriam acesso fácil aos mercados ibérico e europeu. Surpreendem-me as discussões bravas exclusivas entre Porto e Lisboa, disputando grandes investimentos. E o interior? Este é que é decisivo para um país diferente, mais equilibrado e mais coeso – isto é, melhor.
O Presidente da República proporcionou-nos, neste 10 de Junho, o olhar de Portalegre, para respondermos a ele. O curso das primeiras controvérsias não é de bom agoiro. Tresanda ao “centralismo democrático” do costume. Nada está perdido, se nos focarmos na visão de Portalegre, que é simbólica e representativa. Se não lhe atendermos, desperdiçamos a oportunidade e traímos a esperança dos que acreditaram que iriam deixar de ser esquecidos.
Quando João Miguel Tavares apelou ao “Dêem-nos alguma coisa em que acreditar”, certamente pensou em diferentes “nós” que necessitam de acreditar. Aqueles para que é mais urgente são, além de todos os mais pobres, os que vivem nas regiões deprimidas, como Portalegre. Dêem-lhes, finalmente, alguma coisa em que acreditar.