Aberta há 55 anos em Lisboa, a papelaria Eduardo dos Livros tenta resistir ao despejo
O despejo está marcado para este domingo. A venda do edifício de Campo de Ourique que pertencia à Fidelidade levou a este desfecho mas Helena Pereira promete não desistir. “Não saio daqui, podem ter a certeza”.
A papelaria Eduardo dos Livros abre de manhã cedo e se for preciso ainda fecha depois da hora de jantar. Helena Pereira recebe quem chega atrás de um balcão onde se lê, em letras enormes, “DESPEJO NUNCA”. Está ali desde os 12 anos mas vai ser despejada – e já neste fim-de-semana.
“O meu pai abriu esta papelaria em 1964”, conta ao PÚBLICO, encostada no balcão cheio de revistas. “Inicialmente era na loja ao lado, porque isto aqui era um banco, mas depois mudou”. Ainda andava na escola mas foi “puxada” para ajudar os pais a cuidar de uma papelaria que se veio a tornar num ícone do bairro. “Isto sempre foi um ponto de referência e um ponto de encontro”, explica, com interrupções para atender quem vai entrando.
A papelaria é uma sala pequena, parece-o ainda mais pela quantidade de revistas e jornais expostos em todas as paredes. Mas a confusão desaparece quando se percorre os pequenos corredores que os móveis de arrumação criam: cada coisa em seu lugar e fica fácil prestar atenção a uma de cada vez. Encontram-se publicações para todos os gostos: revistas cor-de-rosa, livros de palavras cruzadas, edições de geografia e história e até jornais franceses. Talvez também por isso seja dos sítios mais conhecidos do bairro do Campo de Ourique.
Pergunta a um senhor acabado de entra há quanto tempo se lembra dela ali. “Vim para cá há 50 anos e a senhora já cá estava, não se pode ir embora”, responde o cliente. Quem mais entra pela sua loja fazem-no há anos com regularidade e não aceitam que a papelaria feche. Muitos deles não precisam de dizer nada quando entram, Helena já os conhece e sabe o que querem. Pergunta quantos são hoje, respondem-lhe que são dois e não precisa de mais para saber a marca do tabaco ou o jornal que lêem todos os dias.
Pega num envelope de onde tira algumas fotos e vai mostrando. O pai, a mãe, a papelaria quando abriu há 55 anos. Limpa as lágrimas dos olhos. “Não sei fazer mais nada”, diz. Mantém ao seu lado uma moldura com uma foto sua e dos pais, nunca os perde de vista. A doença levou-os em 2010 e 2013, ambos em dias de lotaria, mas nem por isso se fechou a papelaria – com ou sem o Eduardo que a criou.
A loja tornou-se, em parte, a sua casa. Tem um quarto com cama, televisão e casa de banho, e é lá que passa muitas das noites. “Tenho medo de andar sozinha por isso muitas vezes fico aqui”, explica.
A vida ali é simples, tem tudo o que precisa. Os vizinhos e amigos, que já a conhecem há décadas, gostam de lhe levar comida todos os dias e assim nem precisa de cozinhar em casa. “Estou habituada a esta gente toda, isto aqui sempre foi uma família”.
“Não me mandam embora”
O prédio era detido pela Fidelidade mas foi vendido à Neptunecategory, uma das empresas portuguesas que integra o fundo americano Apollo. Recebeu a ordem de despejo em Outubro – para sair a 30 de Junho – e até hoje, segundo conta ao PÚBLICO, ainda não conseguiu respostas por parte de quem a quer tirar dali. “Sempre pagámos a renda”, acrescenta, reforçando que esta também tem vindo a aumentar face à pressão imobiliária na cidade de Lisboa.
Nunca conseguiram comprar o espaço mas Helena não foi por não tentarem. O contrato, que estava em nome do seu pai, passou para o seu. Desde então que é a inquilina oficial do espaço e, garante, nunca deixou de renovar os contratos. “Querem-me tirar daqui e dizem que só tenho um contrato de cinco anos, mas a papelaria já aqui está há muito mais do que isso”, continua.
Critica as empresas envolvidas e chama-lhes “fantasmas” – não os vê, nem os entende, só sabe que a querem tirar dali sem lhe explicarem muito bem porquê. “Eu sei que posso não cá estar a vida toda, mas não é com este assédio todo que me mandam embora”, afirma.
O PÚBLICO tentou contactar a Square Asset Manegement II Consulting, empresa responsável por estabelecer o contacto entre o Fundo Apollo/Neptunecategory e os inquilinos, mas não obteve resposta em tempo útil.
Por todo o bairro foi assistindo a acontecimentos parecidos. Já não vive lá tanta gente, e a que está já não se conhece, mas muitos foram tratados de forma semelhante, acredita. Não culpa o turismo: “podiam vir os turistas todas, desde que a gente fosse bem tratada”.
Ainda não tem direito a reforma mas esta não está longe, o que não a tranquiliza. “Anda sempre tudo atrasado...”. Olha em volta e de novo se comove. Ainda se lembra dos tempos em que a papelaria se via cheia, com filas do balcão até à porta. Conta que foram os primeiros a ter o totoloto e que chegaram também a vender títulos da Carris. Com o tempo, o negócio foi esmorecendo.
Helena diz que precisa de ajuda – não tem força para lutar sozinha pela sua casa. Várias associações ligadas à habitação – Como a Habita e a Stop Despejos – juntaram-se à causa e daí os cartazes contra o despejo espalhados pela papelaria. Para este sábado está marcada uma festa “anti despejo” e Helena planeia passar a dormir por lá. E depois? Abana a cabeça e enche-se de coragem de novo: os livros ficam e Helena também. “Não saio daqui, podem ter a certeza”.
Texto editado por Ana Fernandes