O “debate” e... o Debate sobre o Centro de Interpretação do Estado Novo em Santa Comba Dão
Será que um centro destes pode motivar a peregrinação saudosista de que se fala? A Democracia não pode ter medo dos autoritarismos e totalitarismos que procura atacar, nem dos seus eventuais defensores.
O “debate” sobre o alegado “Museu Salazar”
A simples apresentação, feita com algum cuidado no site oficial, por parte do município de Santa Comba Dão, a que pertence Vimieiro, a aldeia onde nasceu Salazar, da eventual e futura criação de um centro interpretativo do Estado Novo, originou imediatamente uma onda de indignação por parte de vítimas do autoritarismo salazarista, de “antifascistas militantes” e de personalidades contra o que chamaram, sem nunca assim ter sido nomeado, o “Museu Salazar”.
Naturalmente vieram a surgir vozes contrárias do que se considerou de imediato, de forma etiquetada, um documento de “fascistas” a favor do dito “Museu Salazar”, onde estariam figuras de direita, mas igualmente democratas que apenas se quiseram pronunciar sobre o assunto.
Houve também outros que justificaram a sua posição da seguinte forma intermediária: um centro desse tipo “sim”, mas não na localidade onde nasceu o estadista.
Até as páginas humorísticas incluíram, com as suas palavras brejeiras e os seus cartoons, uma alusão crítica a este fenómeno, ironizando-o e ampliando-o, como faz parte das artes da caricatura. As redes sociais em que qualquer pessoa se compraz, por vezes narcisisticamente, a escrever os seus textos ou a colocar as suas fotografias, não foi, obviamente, excepção, neste tempo de hipercomunicação, em muitos casos sem verdadeira informação e com o gosto pelo “sensacional”.
Enfim, este país acordou neste sonolento mas pouco quente Verão — felizmente pouco propício a incêndios, que sempre dão matéria para a comunicação social —, com uma discussão que já tem anos de vida, mas que surge apenas quando alguém se lembra, mesmo que de forma objectiva e bem intencionada, de falar de um tema que parece tabu. Originou textos sem qualquer aprofundamento, por exemplo nas já muitas vezes cansadas “petições públicas”, que se tornaram quase uma prática ou um “costume”, uma tomada de consciência, ou uma ilusão, afirmativa de cidadania.
A necessidade de uma reflexão séria sobre o tema
O tema merece uma reflexão calma, por quem tem pensado as questões da memória, sem alguma vez defender leis que a pretendam controlar, como se controlasse a liberdade de cada um se exprimir. Ou por quem entende que a história, nos seus diversos meios de desenvolvimento, científico e de divulgação, tem de seguir formas fundamentadas e objectivas, como sem dúvida sucede nos centros de investigação responsáveis, neste caso um centro que ajudei a criar (mas de que as leis da aposentação me têm naturalmente afastado, para dar lugar a outros). Refiro-me ao Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra, mais conhecido pelo CEIS20, que tem estado ligado a este projecto, ou — atenção! — a um projecto muito mais lato, sem objectivos ideológicos, mas que sempre pretendeu pôr a Ciência ao serviço da Comunidade.
Trata-se, pois, de uma reflexão pessoal, que tenho apresentado tantas e tantas vezes nos jornais ou em artigos ou livros, mas que raramente tem provocado qualquer debate, como deveria, neste país onde só o “espectacular” parece interessar alguns intervenientes.
Factos e ficções
Ao longo do tempo, vários presidentes da Câmara Municipal de Santa Comba Dão — do PS e do PSD — puseram a questão do restauro da casa onde nasceu Salazar e da casa onde passou férias e recebeu várias personalidades, entre elas a conhecida Christine Garnier, e do uso do espólio na posse de dois sobrinhos-netos do que foi o todo-poderoso “Chefe” do “fascismo à portuguesa”.
Entendia-se, por um lado, que manter as casas em ruínas, como se encontram, era uma vergonha para a autarquia e até para a democracia, que deveria tratar de modo digno as referidas habitações — ao invés (acrescento eu) do que sucedeu em Lisboa, onde a emblemática sede da PIDE foi transformada em condomínio de luxo — e, por outro lado, que o referido espólio tinha o seu valor e que deveria ser publicitado, não como meio de sublimação de um regime, mas como “objecto da história”, a ser visto e a ser analisado por especialistas. Nessa altura fui contactado diversas vezes pelo município, porque sou beirão, trabalho sobre o Estado Novo e sobre a República, tendo orientado e discutido imensas teses, porque fui autor, com as imagens escolhidas e tratadas por Alexandre Ramires, de uma biografia de uma outra personalidade bem diferente, António José de Almeida, e tenho sido um dos defensores da musealização da sua casa em Vale da Vinha, na freguesia de S. Pedro de Alva e no concelho de Penacova.
Defendi então, no caso de Santa Comba, que essa ideia deveria ser tema de reflexão e discussão cívica, cultural e científica, convidando para tal todas as forças políticas democráticas e os vários historiadores do Estado Novo, das mais diversas sensibilidades. Desafortunadamente, o “projecto”, se é que chegou a existir como tal, não passou disso, especialmente porque veio a de cimo a infeliz ideia da “marca Salazar”, até a atribuir a um vinho, dado que Santa Comba pertence à famosa região demarcada do Dão e seria um motivo turístico de atracção de um concelho sem grandes viabilidades económicas.
Nessa altura — sobretudo por razões cívicas ou mesmo ideológicas, mas até porque me considero não um turista mas um viajante que procura conhecer o país a palmo, ao invés daqueles que só falam, por exemplo, de Pedrógão Grande e de Mação pelos tristemente célebres incêndios florestais — distanciei-me desse “projecto turístico” e até dei uma entrevista em Santa Comba à TV, conjuntamente com um movimento pelo qual tenho bastante respeito, que tem a feliz designação de “Não Apaguem a Memória”. O CEIS20 estava então a dar os passos decisivos para a sua consolidação.
Novos factos
Há alguns meses o actual coordenador do Centro que ajudei a criar e já fez vinte anos voltou a ser contactado, ou, melhor, teve a ideia de criar um verdadeiro projecto de desenvolvimento cultural com vários concelhos do interior que estão ligados a figuras e situações históricas. O meu colega António Rochette e o meu muito mais jovem colega historiador João Paulo Avelãs Nunes, também especialista do Estado Novo, tema sobre o qual escreveu a sua tese sobre o volfrâmio, falaram comigo sobre o assunto. Estava próximo o Centenário da Eleição e da Posse de Presidente da República António José de Almeida (1919-2019) e musealizar a sua casa, já adquirida pelo Município de Penacova, fora sempre um dos objectivos que tive. Mas pensava-se também na musealização, finalmente, da casa de Aristides de Sousa Mendes, figura investigada por Lina Madeira numa tese de doutoramento que orientei, e cujo projecto inicial — sempre adiado — acompanhei em Cabanas de Viriato (Carregal do Sal), na hipótese de criar algo de significativamente memorial sobre Tomaz da Fonseca em Mortágua, que tanto interessara há bastante tempo a câmara e a minha antiga aluna Teresa Branquinho, além de ter sido objecto de uma tese de doutoramento, depois publicada, de Luís Filipe Torgal, da musealização dos sanatórios do Caramulo (Tondela) e até de se recordar Afonso Costa em Seia, que estava a ser pesquisado por um membro do CEIS20, infelizmente falecido prematuramente neste ano, Jorge Pais de Sousa. Mas fomos pensando também em tantas outras possibilidades, como em Arganil recordar a figura de Alberto da Veiga Simões (também abordado em dois notáveis e esquecidos livros por Lina Madeira e que foi objecto de homenagem por Mário Soares enquanto Presidente da República), como de Alberto Moura Pinto, figura da República e da oposição democrática, que já havia sido rememorado na sua casa devido à iniciativa de uma outra fundadora do CEIS20, Heloísa Paulo, que lhe tem dedicado alguns estudos, como de Fernando Vale, um democrata inesquecível, sobretudo para quem como eu o conheceu e o entrevistou por ter conhecido pessoalmente António José de Almeida.
No contexto vasto deste projecto, surgiu afinal a ideia, agora renovada, de poder vir a criar um Centro de Interpretação do Estado Novo. Para tal pensou-se numa interessante escola, cujo interior não conheço, antecessora do “Plano dos Centenários”, emblemático da política de educação do Salazarismo, que foi visitada por João Paulo Avelãs Nunes e por Luís Miguel Correia, arquitecto e professor do Departamento respectivo da Universidade de Coimbra e membro do CEIS20. Obviamente a ideia nunca seria — tal como não foi nos anos 90 e no início deste século — criar um “Museu Salazar”, e sim contextualizar um sistema que durou cerca de quarenta anos, que tem como explicação o ruralismo do estadista ali nascido no Vimieiro, o seu “catedratismo” e catolicismo conservador de tipo social em Coimbra, como a sua acção no sentido da formação e afirmação do Estado Novo a partir de Lisboa. Trata-se afinal de uma contextualização que revele o sentido da sua doutrina política corporativista de “partido único”, com o seu aparelho de “reprodução” e de repressão que lhe anda ligado (em termos de Censura e autocensura e de perseguição pela PIDE, que tenho abordado pessoalmente e em trabalhos que orientei) e que terminou em 25 de Abril, em parte graças à prolongada guerra colonial, em que participei, na Guiné, que fez despertar o espírito patriótico de alguns militares e muitos civis contra o Estado Novo, que a alimentou sem criar pontes de entendimento com as forças independentistas.
Nesta medida, foi pensado o projecto lato que foi, sintomaticamente, apresentado em público pelos meus colegas António Rochette e João Paulo Avelãs Nunes, no dia 17 de Julho (dia do nascimento de António José de Almeida), durante as cerimónias do feriado de Penacova, na presença honrosa do senhor Presidente da República, professor Marcelo Rebelo de Sousa, que pretende sempre fazer jus à ideia de estar com o povo deste país nas suas alegrias e tristezas.
Do “debate”… ao Debate
Finalmente o problema.
Justifica-se um Centro de Interpretação do Estado Novo na terra natal de Salazar? Ou, utilizando um vocabulário viciado, pode admitir-se um “Museu Salazar” em Santa Comba Dão?
Já praticamente dei a resposta. Obviamente que não se aceita qualquer Museu oficial que sirva para, de uma forma directa ou indirecta, homenagear Salazar, como se fez com Lenine e ainda se faz com Estaline ou com Ataturk. Mas compreende-se e talvez se deseje criar um Centro de Interpretação (expressão agora em voga) que sirva para explicar as motivações do sistema e as suas práticas.
E será que um centro destes pode motivar a peregrinação saudosista de que se fala? A Democracia não pode ter medo dos autoritarismos e totalitarismos que procura atacar, nem dos seus eventuais defensores.
É certo que na Itália, que foi inventora do fascismo, a direita volta a aparecer com algum significado. Mas será pelas peregrinações ao mausoléu do cemitério de S. Cassiano, em Predappio, a que assisti — confesso que com algum receio — onde surgia uma guarda de honra ao túmulo de Mussolini, camicie nere distribuindo novos números do jornal Il Popolo d’Italia, e vi uma missa rezada por um padre fascista, ou sucederá isso pela falência de um sistema neoliberal que não tem conseguido resolver os novos problemas sociais, na Itália e não só? Poderá suceder algo de idêntico no cemitério do Vimieiro nas campas rasas de Salazar e da sua família (como já sucede), mas será sempre de uma forma diferente, pois não existe no país, felizmente, uma onda neo-salazarista. Em Predappio a casa onde nasceu Mussolini está restaurada — assim sucedeu graças à Comuna local, na altura governada pelo Partido Socialista — e nela apenas são apresentadas exposições temporárias, a fim de melhor compreender o regime que se autodestruiu em 1943 e que foi vencido pelos “Aliados” em 45, com o criminoso Nazismo do Holocausto, que lhe deu força e um significado mais repressivo com a criação do Eixo. A interessante exposição que ali vi tinha como temática “Il Fascismo e il vino”.
Por outro lado, recordarei sempre a musealização em Nuremberga, no próprio local monumental que resta onde se reunia o Partido Nazi, com as suas grandes paradas, de um modelar centro didáctico, com espaços dirigidos à juventude, para que, recordando o passado sangrento, não mais se sinta atraída por ele e pelo seu “folclore”. Terá um efeito idêntico aos campos de concentração, que constituem — por exemplo na Alemanha em Dachau, próximo de Munique — um significativo meio de ensino contra o totalitarismo.
Quase não conheço o presidente da Câmara de Santa Comba Dão, para estar a defendê-lo, mas poucos leram o seu comunicado inicial (não me refiro ao mais actual, com data de 24 de Agosto) no site do município, que terá dado origem a toda a série de documentos, a começar pela petição ao primeiro-ministro, que não deixa de ter um carácter um pouco estranho. Fala-se nesse comunicado do restauro da escola — que infeliz, mas objectivamente, tem o nome de Cantina-Escola Oliveira Salazar — e da organização ali de exposições temporárias e, num segundo tempo, de um Centro de Interpretação. A organizar-se esse Centro, há que confiar nos historiadores que têm trabalhado sobre o Estado Novo, não apenas aqueles que pertencem ao CEIS20, mas também os que forem convidados a colaborar. Tal como sucede com o Centro de Documentação 25 de Abril em Coimbra, criado pelo meu colega Boaventura de Sousa Santos e de cuja primeira direcção fiz parte, com o Museu do Aljube e deverá acontecer com o Museu do Forte de Peniche, em que o CEIS20 tem colaborado, fazendo-se representar pelo meu colega João Paulo Avelãs Nunes.
Há, pois, que recolocar o “debate”, transformando-o… num verdadeiro Debate. A Cultura e a Política portuguesas bem precisam de autênticos Debates, que raramente surgem. Na verdade, é mais fácil escrever petições, publicar opiniões no Facebook, como quem tira selfies, ou mesmo escrever crónicas fora do contexto e que parecem desconhecer os documentos…