A reprovação escolar e a agressão física não educam ninguém
Depois de décadas de evidência na área, defender a agressão física ou verbal e defender a reprovação das crianças como forma de as educar está errado. A punição não funciona, se o objetivo é educar e reabilitar as crianças em dificuldades. Continuar a insistir nestas teclas é sadismo. Nada mais que isso.
Nota: neste artigo irei fazer uma síntese da evidência existente. Para mais informação, aconselho a leitura do artigo SCIMED sobre o tema.
Comecemos por esclarecer um ponto importante. Ser pai não faz ninguém perito em educação. Ser professor não permite avaliar, utilizando a “experiência”, quais as medidas mais ou menos eficazes em termos educativos. Lamento.
Para exemplificar isto, gosto sempre de falar das sangrias. Durante séculos, as mentes mais brilhantes da medicina praticaram sangrias. Durante séculos, achavam que estavam a salvar doentes. Durante séculos, mataram centenas de milhares de pessoas com esta prática. E foi apenas com o método científico que percebemos que as sangrias não salvam pessoas, matam pessoas.
O mesmo relativamente à educação. Apenas com estudos bem desenhados conseguimos perceber se determinadas medidas são positivas ou não. A vossa experiência não tem qualquer interesse para validar intervenções.
Agressão física e verbal como método educativo
Existem mais de 50 anos de publicações nesta área. As conclusões são uniformes. Bater em crianças, mesmo de mão aberta (a famosa palmada), é prejudicial ao seu desenvolvimento e deixa marcas para o resto da vida. Mesmo a agressão verbal é prejudicial. Não tem nada de educativo, não ajuda a melhorar comportamentos e vai apenas perpetuar este tipo de “formato educativo”, já que uma grande proporção das pessoas que foram vítimas deste tipo de “educação” irá fazer o mesmo aos seus filhos.
Isto foi claramente demonstrado numa meta-análise publicada em 2016, numa revisão da evidência de 2018 e é a posição da American Academy of Pediatrics, publicada em 2019. O debate terminou. Não existe um único estudo científico com metodologia minimamente robusta que demonstre efeitos positivos da agressão física ou verbal das crianças como método corretivo do comportamento.
Então, como educar a criança? Uma educação eficaz envolve empatia, a recompensa do comportamento positivo, estabelecer relações claras e compreensíveis entre o certo e o errado e explicar as consequências de determinados comportamentos. Ficam aqui algumas dicas para educar as crianças, sem recorrer a violência física ou psicológica, tanto para as mais novas como para as mais velhas.
A homeopatia da educação: reprovar crianças
Se a violência física e verbal tem 50 anos de estudos, a retenção/reprovação escolar tem mais de 100 anos de dados para analisar. Mais uma vez, a evidência é avassaladora, os factos incontornáveis.
Duas meta-análises publicada sem 2001, uma que analisou a evidência da década de 70 e 80 e outra que analisou a evidência da década de 90 chegam exatamente às mesma conclusões. Reprovar tem um impacto neutro a negativo no sucesso académico das crianças. Os poucos ganhos obtidos são perdidos passados 2-3 anos. O impacto a nível psicológico da reprovação é neutro a negativo, nalguns casos com sequelas para o resto da vida. Quando mais tarde se reprova a criança, maior o impacto.
Já em 2007 (e novamente em 2011), a National Association of School Psychologists referia que “para a maioria dos estudantes, a retenção tem um impacto negativo em todas as áreas de desempenho (por exemplo, leitura, matemática, linguagem oral e escrita) e no ajuste social e emocional (por exemplo, relacionamentos com colegas, autoestima, comportamentos problemáticos e frequência escolar). Um estudo das perceções com alunos de sexto ano indicou que eles consideram a retenção escolar como um dos eventos de vida mais stressantes.”
O trauma da reprovação chega a ser classificado ao nível de perder os pais ou ficar cego.
Em 2009 é publicada uma nova meta-análise sobre a eficácia da retenção, considerando todos os estudos publicados entre 1990 e 2007. A revisão não encontrou desvantagens no sucesso académico quando os alunos eram reprovados. Mas, por outro lado, também não encontrou qualquer vantagem, o que torna a medida inútil como forma de reabilitação académica.
Em 2015, a UNESCO lança um relatório sobre 15 países da América Latina, referindo que “a repetição, supostamente destinada a melhorar a aprendizagem dos alunos, aparece como um mecanismo ineficaz que se associa a uma menor aprendizagem” e indica o uso da reprovação apenas em “situações excecionais”.
Em 2017 foi publicado um dos estudos com a metodologia mais robusta até à data sobre a reprovação no ensino básico e conclui que, “embora a retenção no ensino básico não prejudique os alunos em termos de desempenho académico ou motivação educacional na transição para o ensino médio, a retenção aumenta a probabilidade de um aluno abandonar a escola antes de obter o diploma do ensino médio.”
De facto, a retenção escolar é um dos fatores preditores mais robustos de abandono escolar. E, mais uma vez, não foi encontrado nada de positivo na reprovação escolar.
Até podíamos dizer que estes estudos internacionais não têm em consideração a realidade portuguesa. Mas os portugueses já publicaram vários estudos sobre o assunto, utilizando a nossa realidade. Conclusão? A mesma coisa. Reprovar crianças é uma medida neutra a negativa e extremamente cara, não atingindo os resultados a que se propõe (1, 2, 3, 4).
Agora, obviamente que acabar com as retenções escolares não deve ser feito de forma isolada. É necessário acabar com as retenções e iniciar um processo de recuperação das crianças com dificuldades, de acordo com os problemas identificados. Maior envolvimento dos pais na educação das crianças, apoio personalizado a nível educacional e social após identificação destas crianças. Programas de acompanhamento após horário escolar. Cursos técnico-profissionais em todas as escolas e com início no ensino médio. E, talvez mais importante, aproveitar os 250 milhões que se poupa a acabar com as retenções e ajudar os pais com maiores dificuldades socioeconómicas, dada a ligação entre ambos os fatores.
Em termos políticos, acabar com a reprovação das crianças devia ser aplaudida pelas pessoas que mais se identificam com a direita política, já que gostam que o Estado seja poupadinho e não gaste dinheiro em coisas inúteis. E devia ser aplaudida pelas pessoas mais à esquerda, já que a retenção apenas agrava as desigualdades sociais e seria possível utilizar parte do dinheiro que se poupa acabando com a retenção para trabalhar essa área.
Conclusão? Depois de décadas de evidência na área, defender a agressão física ou verbal e defender a reprovação das crianças como forma de as educar está errado. A punição não funciona, se o objetivo é educar e reabilitar as crianças em dificuldades. Continuar a insistir nestas teclas é sadismo. Nada mais que isso.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico