O que se passa no Livre?
A gravidade das declarações de Joacine merece certamente escrutínio e se o teme, é porque sabe que ultrapassou os limites da decência e do respeito pelo partido cujos meios cavalgou para chegar onde hoje se encontra.
O que se passa com o Livre é - do ponto de vista da análise política - extremamente interessante. A análise do programa do partido e dos seus estatutos não deixam antever nenhuma alteração de fundo e o seu quadro de dirigentes (materializado no chamado “Grupo de Contacto” de 15 militantes) mantém-se estável. Mas não é isso que transparece actualmente na maioria das notícias que chegam aos media sobre o partido que agora chegou ao Parlamento e que teve um primeiro apogeu (mas certamente não o último) na “Guerra Joacine-Livre” do fim-de-semana de 23 e 24 de Novembro.
Não havendo alterações de fundo nos estatutos, programa ou quadros dirigentes o que se passa agora na encarnação actual do Livre pode ser o produto de um de três fenómenos (que podem funcionar em paralelo):
1. O sublinhar de questões fracturantes e extremistas (quotas étnicas, feminismo radical, anti-racismo, etc.) é um produto da agenda pessoal da deputada e não representa uma forma significativa dos quadros e eleitores do Livre.
2. O extremismo actual do Livre é aparente e táctico (marketing político) buscando nas questões fracturantes um mercado eleitoral que a transformação do Bloco de Esquerda num partido do “eixo de governação” deixou por conquistar.
3. O extremismo discursivo do Livre é real e profundo e corresponde efectivamente a uma alteração em curso para um partido situado na banda ultra da extrema-esquerda.
É impossível exactamente saber o que se passa dentro dos órgãos do Livre (embora, comparando com outros partidos e por obrigação estatutária, este até seja um dos mais transparentes partidos portugueses) e apenas se pode observar com exactidão o que transparece para fora do partido nas declarações da deputada ou na indumentária do seu “assessor de saias” (um golpe muito eficaz de marketing político) ou, mais recentemente nas suas atitudes e opções decorrentes da abstenção do voto sobre a Palestina. Dentro desta incerteza é, contudo, possível perceber que este “desvio para o extremo vermelho” que radicaliza o partido Livre estava a ser aprovado ao mais alto nível no contexto de uma estratégia de afirmação eleitoral e de crescimento parlamentar. Estava até ao momento do voto em abstenção e das consequentes trocas de acusações entre a deputada do Livre e a direcção do seu partido (que, aliás, integra).
A questão está em saber se esta estratégia de radicalização vai continuar a ser eficaz e garantir a preservação ou o crescimento da representação parlamentar do partido e se sobrevive à “guerra Joacine-Livre”. E é provável que não... Em primeiro lugar o rendimento eleitoral da selecção de uma deputada com gaguez grave pode ter-se esgotado aquando do “momento novidade” da sua apresentação ao eleitorado e o capital de simpatia assim conquistado não é renovável e a partir do momento da eleição passa a ser mais importante a qualidade da prestação parlamentar e a originalidade e relevância política das suas posições. Ainda é cedo para avaliar os três vectores de desempenho parlamentar mas as dificuldades de expressão verbal já estão a deixar evidente que há um problema que os outros dois vectores terão grande dificuldade em compensar. Neste contexto a falha do prazo para entregar o projecto de sobre a lei da nacionalidade (uma das prioridades da campanha do Livre) e que o impede de, na prática, apresenta a proposta no debate marcado para 11 de dezembro demonstra que apesar de estar rodeada de assessores (a deputada do Livre tem mais assessores por cabeça do que qualquer outro deputado da Assembleia) esta grave falha processual alegadamente devido “aos problemas de comunicação já conhecidos” representa que, no vector da qualidade da prestação parlamentar não é por aqui que o Partido Livre vai recuperar a credibilidade perdida uma vez que aqueles que em si confiaram para que a lei da nacionalidade fosse alterada não encontraram a competência suficiente na sua eleita para a defender. De futuro, recomenda-se aos assessores do Livre mais atenção aos prazos parlamentares e menos à escolha do modelo de saias.
A deputada tem feito também questão de exibir um “amor de si” que não cria condições a um bom mandato parlamentar porque é preciso que um eleito viva próximo dos seus eleitores e que não paire, que seja humilde e não arrogante e que não viva numa condição semidivina de infabilidade papal. Neste sentido é inqualificável, surpreendente e ditou certamente o fim da sua carreira política a proclamação injusta de que “ganhou as eleições sozinha” e que “não aceita que a direção a ensine a ser política” (entrevista ao Observador) nem quando “responsabiliza Rui Tavares pela intervenção do “tribunal” do partido": a gravidade das suas declarações merece certamente escrutínio e se o teme, é porque sabe que ultrapassou os limites da decência e do respeito pelo partido cujos meios cavalgou para chegar onde hoje se encontra.
Mas num ponto a deputada tem razão: o modelo colegial de 15 membros que o Livre escolheu ter (e onde boa parte dos membros não participa activamente, como se depreende de várias declarações recentes) não funciona porque dilui responsabilidades e não apresenta um responsável único a quem se possam e devam atribuir responsabilidades pelas inércias e ineficiências da gestão corrente. Poderia ser suficiente quando o Livre não tinha eleitos ou havia apenas que apoiar os eleitos locais (em listas do PS) na Assembleia Municipal ou nas Assembleias de Freguesia de Lisboa: mas não é eficiente no apoio ao intenso ritmo dos trabalhos parlamentares: aí exige-se rapidez, dedicação exclusiva (o Livre não tem funcionários) e autonomia parlamentar (que este episódio prova não existir). Há outro fenómeno que esta “guerra Joacine-Livre) ilustra que é um dos defeitos do modelo das eleições primárias (de que o Livre é, hoje, o melhor exemplo português): um deputado assim escolhido adquire automaticamente um poder desmesurado frente a outro, de outro partido, eleito em listas abertas ou fechadas, porque, na prática se representa a si mesmo e obtém um mandato directo (que Joacine fez questão de recordar ao dizer que “ia cumprir integralmente aquilo para que foi mandatada") e que ultrapassa qualquer direcção ou “assembleia” de dirigentes.
No decurso deste episódio (o primeiro de outros que, em breve, se seguirão) fica nítido que a deputada vota em contra-senso ao programa eleitoral do Livre (palavras do comunicado da direcção do partido) e que a deriva do Livre para uma banda extrema da extrema-esquerda a que acima aludi está mesmo a acontecer no registo parlamentar e que isto está acontecer contra a vontade da maioria da direcção do partido. É assim provável que a deputada - investida de uma representação directa via primárias - procure agora conquistar posições na direcção do Livre agregando os apoiantes que instalou como assessores no Parlamento e que tem nas alas mais radicais do partido procurando repelir os moderados que - liderados por Rui Tavares - procuram preservar o legado de centro-esquerda, europeísta e moderado do Livre e que tentam agora, sem sucesso, “repô-lo no trilho” e do “bom senso” (Rui Tavares). A este respeito há que observar a coreografia da chegada da deputada à reunião do Livre onde se ia analisar o seu desempenho parlamentar rodeada de assessores e seguidores por contraste com Rui Tavares que chega e sai sozinho. É certo que Joacine tentará este golpe palaciano a partir desta base de apoio. Se este falhar poderá até continuar a representar o Livre, mesmo perdendo a confiança política da direcção porque o Regimento da Assembleia prevê que seja a própria deputada a pedir ao presidente do Parlamento a mudança para “deputada não inscrita” mas dado que isso levará à perda dos direitos de intervenção é muito duvidoso que opte por esta jogada.
Algo é certo: estas declarações radicais, produzidas pela deputada numa base quase diária nas últimas semanas não estão a favorecer o Livre nas sondagens. A mais recente (publicada dias antes da “guerra Joacine-Livre") dava o Chega a subir de 1,29% para 1,7% e o seu “rival” no extremo oposto, o Livre, a cair 0,2% para os 1,09% (com o Bloco a subir)
A questão de fundo que esta interessante questão política coloca é a de saber se esta “política da espuma dos dias” em que através de proclamações bombásticas ou extraordinárias não representa também um sinal da degradação da qualidade da participação dos partidos políticos e um desvio extremista em busca de uma sobrevivência que estava ameaçada quando o discurso externo do Livre era compatível com o seu europeísmo militante ou com os seus estatutos avançados e programa de esquerda moderada. Se o futuro de um partido político pode apenas ser assegurado pela imposição de uma “máscara mediática” extremista ou de uma deriva radicalizante profunda que o afasta da maioria do eleitorado e das posições moderadas então não estamos apenas perante uma “doença” do Livre mas de uma doença sistémica de todo o sistema político-partidário português.