Sintra, Património da Humanidade, aqui e agora

Sintra está a ficar refém do pladur, do alumínio, da telha lusa, da tinta plástica e “fruticolor”, da impermeabilização dos logradouros. É chegada a hora para Basílio Horta reactivar o já citado Gabinete do Centro Histórico.

"O Plano Director Municipal de Sintra, por forma a assegurar o Capital Natural de Sintra, estabelece um conjunto integrado de normas, que assentam no desígnio de valorização do património natural e cultural do território, bem como de contenção urbana, evitando o alastramento desordenado e desestruturado das edificações ou urbanizações, e reconhece a importância do seu Capital Natural.”
(in preâmbulo do novo Plano Director Municipal de Sintra)

A 6 de Dezembro do próximo ano terá passado um quarto de século sobre o anúncio feito durante a 19.ª Sessão do Comité UNESCO, em Berlim, de que Sintra havia passado a integrar aquela Lista na categoria de Paisagem Cultural. Urra!

A esta distância já todos imaginamos as resmas de papel couché e demais derivados da indústria da celulose, que serão transformadas em convites a S. Exas. e as imaculadas brochuras comemorativas. Os telões, as bandeiras, os discursos inflamados, o croquete e o folhado, o travesseiro e a queijada. As sessões públicas a evocarem a efeméride, esquecendo-se todos que o estatuto alcançado não era um fim em si mesmo, mas um meio para que Sintra pudesse ser o que, infelizmente, ainda não é.

Porque de então para cá não parece ter havido grande salvaguarda do património cultural de Sintra, muito menos houve restauro do património em decadência, não a que remete para Byron, mas uma decadência amarga, tantas vezes fruto da especulação imobiliária e de ilegalidades descaradas a que o cidadão comum não consegue pôr fim, nem as entidades reguladoras (CMS, Direcção-Geral do Património, Icomos, ICNF, Parque Natural Sintra-Cascais e a própria representação nacional da UNESCO) sabem como regular, quanto mais sancionar (quererão mesmo?).

É certo que foi criada a Parques de Sintra-Monte da Lua, S.A. (no ano 2000), com a missão de “gerir os mais importantes valores naturais e culturais situados na zona da Paisagem Cultural de Sintra e em Queluz: o Parque e o Palácio da Pena, os Jardins e o Palácio de Monserrate, o Castelo dos Mouros, o Convento dos Capuchos, o Jardim e o Chalet da Condessa d’Edla” e, desde 2012, os Palácios Nacionais de Sintra e de Queluz.

E que o seu trabalho tem sido bastante bom no que toca ao património edificado (o arbóreo já será outra discussão), que tem restaurado, divulgado e reaberto ao público, maioritariamente a expensas dos EEA Grants, diga-se, pelo que agradeçamos também à Noruega pelo seu financiamento.

Mas pelo meio perdeu-se algo importante: a acção desenvolta, competente e dedicada de salvaguarda, muitas vezes compreensivelmente feroz, do Gabinete do Centro Histórico, extinto (demasiado incómodo?) pelo então presidente de câmara, Fernando Seara.

Por isso, mais revisão do PDM, menos revisão, importa termos consciência que a extinção desse Gabinete teve resultados práticos terríveis, muito mais reais do que os nobres articulados daquele Plano, cuja colagem à realidade é de impossível verificação, pois não se vislumbra onde é que tem havido “valorização do património natural e cultural do território”, quando pinhais inteiros desaparecem num abrir e fechar de olhos e o edificado de antanho começa a não deixar rasto. Assim como não é verdade que se tenha feito contenção urbana nem evitado “o alastramento desordenado e desestruturado das edificações ou urbanizações”.

A razia no Banzão e nas quintas históricas como a de Santo António, à Correnteza, são ambas “hoje”. Os sucessivos atentados urbanísticos que ora tapam as vistas ou engolem o casario antigo (vide a inacreditável Gandarinha), os loteamentos em lista de espera (Monte Santos, Ramalhão, etc.). O património histórico que ninguém ousa expropriar (a Quinta do Relógio, por ex.). Tudo isto é a prova provada que as declamações poéticas do PDM, das ARU, etc., não colam com a realidade.

Atenuantes: a forte pressão turística e a congénita tentação de lhe cederem. Daí a fazer-se tábua rasa dos pressupostos do estatuto UNESCO é uma questão de somenos. Entendamo-nos:

Sintra está a ficar refém do pladur, do alumínio, da telha lusa, da tinta plástica e “fruticolor”, da impermeabilização dos logradouros. É chegada a hora para Basílio Horta reactivar o já citado Gabinete do Centro Histórico.

Mas Sintra também já está refém de estiradores sem qualidade, a reboque de uma “reabilitação urbana” que serve para tudo, sobretudo para enganar tolos e encher estatísticas anuais. Pouco faltará para as mansardas duplas em zinco, os alinhamentos de cérceas, quiçá um Pritzker em pleno centro histórico.

Há já um a meio caminho: a pousada da juventude, “arrojada” e “contemporânea”, que até invade o espaço público. Teria sido tão simples uma pousada sem se demolirem as construções da CP que ali estavam há um século. Que mal havia naquela patine? Eram edifícios baixos? Eram. Estavam “irrecuperáveis”; alguém acredita nisso? Trata-se de um precedente, grave porque é no centro histórico.

Igual, pior, se projecta para o antigo Sintra Cinema de Faria da Costa (1949), que como não cai com duas cantigas, têm que inventar que vai cair, a especulação agradece. Vem aí um condomínio com, pasme-se, uma nova sala de espectáculos no lote vizinho. Ou seja, deita-se abaixo uma sala histórica, que pode ser reabilitada seguindo o projecto de Faria da Costa, mas o que interessa é construção nova. Exproprie-se e devolva-se o Sintra Cinema à população.

Tal como se devia expropriar a Quinta do Relógio, onde D. Carlos I e D. Amélia passaram a lua-de-mel, em 1886.

É preciso que Sintra resista à pressão turística, mas também tem que combater a especulação imobiliária, custe o que custar, doa a quem doer. E o gabinete local UNESCO, que anda a fazer?

Sintra ganhou lugar entre o Património da Humanidade, não por uma questão de sinalética “UNESCO Heritage”, mas para que a partir desse feito houvesse motivação de todos (públicos e privados), brio e empenho na salvaguarda do valioso património que vai das arribas do Cabo da Roca até à Portela de Sinta, da Casa Branca de Lino à Ranholas do Ramalhão.

Sintra precisa de um Plano de Pormenor e de Salvaguarda, com Regulamento consequente. E precisa que o ICNF e o Parque Natural Sintra-Cascais cuidem do verde que lhes está afecto, seja “zona tampão” ou de “transição”. Não precisa de uma DGPC amorfa, sem se dar ao respeito, mas antes assertiva no como zelar pelos bens classificados e respectivas zonas de protecção.

Combata-se o promotor sem escrúpulos, a humanidade com “h”, o subterfúgio do “parecer” que afirma que o prédio está a cair quando não está, a poda que mutila árvores irrepetíveis. Porque tão importante quando o edificado velho (não há que ter medo do termo) de Sintra são as suas árvores gigantes e frondosas: as tílias, os ciprestes, os plátanos, os freixos, etc., mas também o musgo dos muros, a patine, o cheiro a lareira, o elemento água e a respectiva arquitectura.

Porque, convenhamos, se o Comité UNESCO desclassificou Dresden por causa de uma ponte construída a 500 metros da zona histórica, também o pode fazer a Sintra quando se assiste ao que se assiste.

E que não se esqueçam do espaço público, que é muitas vezes o elo mais fraco. É preciso que se verifique de facto o primado do peão sobre o automóvel. É preciso mais e melhor espaço público. É preciso ter coragem em delimitar as esplanadas para que não abusem. É preciso restringir ao mínimo o chinfrim e as licenças de tuk-tuk, doa a quem doer, e obrigá-los a serem eléctricos, e o transporte colectivo no centro histórico tem que ser só para veículos de pequena dimensão, eléctricos.

É uma vergonha o caos em frente à estação de comboios de Sintra, os autocarros a mutilarem as árvores no centro da vila porque ou eles ou elas, as esplanadas em cima de árvores classificadas.

Tem que ser para levar a sério o objectivo das ARU: “Garantir soluções devidamente integradas arquitectónica e morfologicamente com a envolvente” (in artigo 128.º do PDM em revisão).

Sintra não pode desperdiçar o galardão UNESCO. Senão, mais valia que D. Fernando de Saxe-Coburgo nunca tivesse saído de Lisboa, quiçá de Coburgo.

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