Direito humano à alimentação: viver mais é uma conquista, viver melhor é um desafio
Numa altura em que se definem as linhas estratégicas e metas do próximo Plano Nacional de Saúde 2021-2030 urge prever a garantia do direito humano a uma alimentação adequada.
Há precisamente 71 anos assistimos a um grande marco com a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Foi proclamada em Paris, após os horrores da II Guerra Mundial, e subscrita à data por 48 países e, atualmente, por mais de 190, com a adesão de Portugal a verificar-se em 1955.
No seu artigo 25.º, esta Declaração consagra o direito humano à alimentação adequada. Parece-nos um direito óbvio e fundamental, pois, sem alimentos para provir os necessários nutrientes, os indivíduos não podem ter vida. A questão que impera é: Portugal cumpre este direito? A Constituição da República Portuguesa não faz referência explícita ao direito à alimentação nas suas disposições substantivas, no entanto está subjacente a outros, como o direito à vida e o direito à saúde.
Certo é que, no nosso país, ainda se constatam situações nas quais não há garantia de um acesso regular a uma alimentação suficiente, adequada e culturalmente aceitável, para uma vida sã e ativa. Este facto é chocante e não nos deve deixar indiferentes.
Então vejamos o porquê de nem todos os portugueses terem acesso a uma alimentação adequada:
1. Uns não conseguem realizar este direito porque não o sabem fazer, pois não têm literacia suficiente para boas escolhas alimentares. Recordamos que estudos recentes mostram que cerca de 40% dos portugueses não conseguem descodificar a informação nutricional básica.
2. Outros porque não o podem fazer, visto que não têm condições económicas que o permitam. Dados do último inquérito alimentar nacional revelam que uma em cada dez famílias não tem dinheiro para uma alimentação adequada.
3. E outros, ainda, porque não o conseguem fazer, não existindo oferta e disponibilidade de alimentos saudáveis. Estudos demonstram que o ambiente em que o indivíduo habita é responsável pelo desenvolvimento e perpetuação de estilos de vida. É disso exemplo uma investigação do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto que alerta para a relação entre a obesidade, o gradiente social e os “food swamps” (locais onde abundam os produtos alimentares nutricionalmente desequilibrados).
Os portugueses vivem cada vez mais anos. Uma realidade que revela uma melhoria geral das condições de vida, mas também o acesso aos avanços da medicina e da tecnologia, com terapêuticas e medicamentos mais inovadores e eficazes.
No entanto, os últimos anos de vida decorrem com pouca saúde, o que se justifica, maioritariamente, por hábitos alimentares inadequados. Viver mais é uma conquista. Viver melhor é um desafio. Num país em que conseguimos ganhos em saúde inegáveis não conseguiremos assegurar uma alimentação adequada a todos os portugueses?
O relatório State of Health in the EU, tornado público este mês de dezembro, apresenta uma panorâmica concisa e relevante da saúde e do sistema de saúde, realçando-se que em Portugal os fatores de risco comportamentais têm efeitos consideráveis na mortalidade, sendo que cerca de 14 % das mortes estão associadas a riscos alimentares, incluindo baixa ingestão de fruta e legumes e elevado consumo de açúcar e sal.
Por outro lado, o mesmo estudo destaca que Portugal continua abaixo da média europeia quanto aos cuidados preventivos. No nosso país apenas 1,8% do total das despesas de saúde é dedicado à prevenção, quando comparado com os 3,2 % na União Europeia. É caso para questionar as decisões dos nossos governantes.
Apesar dos esforços envidados nos últimos anos para melhorar a alimentação dos portugueses continuamos a não fazer tudo o que podíamos e devíamos. É certo que temos uma Estratégia Integrada para a Promoção da Alimentação Saudável e operacionalizámos algumas medidas como a taxação das bebidas com adição de açúcar. No entanto, ao invés de usarmos a verba arrecadada com este imposto para cuidados preventivos, estamos, todos, a pagar dívidas do Serviço Nacional de Saúde.
Em matéria da concretização do direito à alimentação adequada, Portugal tem ainda um longo caminho a percorrer. Neste ano que está prestes a terminar, vimos ser rejeitada pelos nossos deputados uma proposta de Lei de Bases do direito humano à alimentação e nutrição adequadas. Por sua vez, a publicação da nova Lei de Bases da Saúde não acautela a alimentação como garante major da promoção da saúde, prevenção e tratamento da doença.
Numa altura em que se definem as linhas estratégicas e metas do próximo Plano Nacional de Saúde 2021-2030 urge prever a garantia do direito humano a uma alimentação adequada, enquanto caminho para assegurar a melhoria do estado de saúde da população portuguesa.
O Estado tem o dever de garantir o direito humano a uma alimentação adequada delineando políticas que o assegurem. Espera-se que, nesta nova legislatura, o Governo não obstaculize estratégias que promovam uma maior saúde através da alimentação para todos os portugueses.
Aguardemos a discussão do Orçamento do Estado para 2020 impondo-se que seja arrojando e que coloque a alimentação em todas as políticas.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico