Descolonizar no Museu é dialogar (emocionalmente) com passado
Na vida, tal como no Museu, as palavras podem convencer, mas são os exemplos que arrastam… e é isso que esperamos por parte de quem tem o poder de tomar decisões.
Quando lemos um livro, quando vemos um filme, assistimos a uma peça de teatro ou ouvimos música, geralmente deixamo-nos levar pelas emoções. A obra que mais nos marca é, quase sempre, aquela que mais nos emociona, leva a refletir e transforma. Nos museus também é assim. Os curadores começam a perceber o efeito das emoções nos seus visitantes e investem agora numa expografia mais sensorial e reflexiva, que seja capaz de pôr o visitante em diálogo com os objetos.
Este aspeto já era amplamente explorado nas exposições de arte contemporânea e torna-se agora mais comum nos museus em geral, pela forma de intervenções artísticas ou inclusivamente por uma proposta que visa reordenar a museografia das exposições permanentes.
No último ano, por exemplo, tivemos, em Portugal, uma interessante exposição temporária que investia no elemento sensorial: Museu das Descobertas, no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA). A exposição tem um caráter profundamente educativo. Investe na, sempre difícil, tentativa de explicar para que serve um museu, jogando com a palavra “descoberta”, muito debatida nos últimos tempos, devido à proposta de criação de um novo museu que retratasse o período dos Descobrimentos e que teria o nome de Museu das Descobertas.
Apesar de exibir uma perspetiva diferente relativamente ao modo “clássico” de exposição do MNAA (é claramente uma mostra que tenta “agarrar” o visitante, quando comparada com a sua exposição permanente, mais contemplativa), esperávamos mais. O próprio título criava certas expectativas ao visitante, esperava-se talvez alguma reflexão ou análise crítica das peças da coleção desse período presentes no museu.
Apesar de não terem sido contempladas neste modelo de exposição, creio que o mesmo pode ser um bom ponto de partida para trabalhar, no futuro, este tipo de coleções que estão presentes em vários museus portugueses. Seguindo, como no caso anterior, um discurso museográfico capaz de interagir e dialogar com o público (incluindo e percebendo a sua ampla diversidade cultural e etária).
Numa linha museográfica diferente, houve outra exposição temporária em 2019, Convivência(s). Lisboa Plural. 1147-1910 (Museu de Lisboa), que, sim, explorou esta temática numa perspetiva intercultural, ressaltando o papel das minorias na “construção social” da cidade de Lisboa. Tentou seguir o paradigma atual e as práticas discursivas contemporâneas, mas foi incapaz de as materializar na exposição: os objetos iam sempre a reboque dos textos dos painéis, quando deveria ser o contrário. Os comissários não conseguiram soltar-se das amarras da imagem tradicional do museu enquanto espaço (quase exclusivo) de erudição. Faltou-lhes, por exemplo, o engenho emocional de Mining the Museum (já voltaremos a esta exposição/instalação mais à frente), tornando-se, assim, numa exposição de descrição histórica, educativa, mas com pouco espaço para a reflexão e debate.
Enquadradas na mesma temática e num ano em que a descolonização nos museus esteve muito presente em debates nos media, tivemos outras duas boas exposições, menos ambiciosas, mas que tiveram a preocupação de “investir” no diálogo com os objetos, souberam dar-lhes o protagonismo: Contar Áfricas! (Padrão dos Descobrimentos) e Uma História de Assombro. Portugal e o Japão. Séculos XV-XX (Galeria Dom Luis). Sobre ambas já me referi em texto anterior.
No âmbito internacional, 2019 foi também um ano rico no que diz respeito à crítica ao discurso colonial dos museus. Na Holanda (a partir deste ano, oficialmente, Países Baixos) abriu-se um debate sobre o fim do uso do termo Golden Age (Idade de Ouro) nos museus de Amsterdão, em referência às coleções do século XVII, pois a esse período histórico estão associados aspetos negativos como: a escravatura, várias guerras e conflitos e a pobreza.
Em Londres, a Tate Modern passou a ter uma fonte gigantesca que fala da construção do império britânico e do seu lado sombrio esclavagista. A descolonização nos museus foi ainda o tema central da terceira edição do Museo Reimaginado (encontro bianual que reúne os profissionais de museus dos diferentes países do continente americano). Uma das figuras de proa deste encontro realizado em Oaxaca, no México, foi precisamente Fred Wilson, o artista afroamericano que provavelmente desencadeou, na prática, através da sua intervenção no Maryland Historical Society (Baltimore), em 1992, a descolonização nos museus, com a exposição Mining the Museum: a autora da fonte na Tate Modern inspirou-se certamente no artista seu conterrâneo.
Em Baltimore, num museu que conta a história da colonização europeia da região, Wilson teve liberdade para intervir na exposição, desconstruindo o eurocentrismo do museu e falando do papel das minorias na construção do país. Tornou este museu um espaço de diálogo intercultural através das coleções do museu, acrescentando, em certos casos, novos objetos que conjugou com os que estavam em exposição. Destacam-se as grilhetas colocadas no centro de uma vitrina composta por obras de ourivesaria em prata dos séculos XVIII e XIX, acrescentando uma tabela com a palavra metalwork (trabalho do metal) ou ainda a introdução de um barrete do Klu KLux Klan sob um carrinho de bebé, ou ainda estátuas de indígenas americanos de costas para o público, com a legenda “proprietários do tabaco”, aludindo à posse das terras por parte dos povos originários.
Estes e outros exemplos expostos visavam despertar os visitantes consciencializando-os que essas comunidades sempre estiveram presentes na história da América e que aquelas obras de arte tinham uma contraparte que se verificava através de outros objetos. Wilson, na sua conferência em Oaxaca, tece palavras interessantes sobre o sentido do objeto nos museus: “os objetos não nascem nos museus, mas nele podem mudar o seu significado e a sua mensagem de acordo com o seu contexto.” Palavras corretas, mas de certa forma perigosas se forem desprovidas de análise.
De facto, nenhum objeto nasce num museu, e é certo que os museus podem criar narrativas imprecisas. Isso acontece frequentemente nos museus etnográficos, onde, partindo de uma visão estética europeia, geralmente se reinterpreta a função e o sentido de objetos de outras culturas. Wilson refere-se sobretudo a uma perspetiva artística de transformação para mudar as mentalidades dos museus. A sua mensagem e obra têm muito impacto pela novidade, mas também porque são capazes de gerar emoções e um diálogo sensorial com os objetos.
Laurajane Smith destaca, em texto de 2014, a importância da experiência emocional em museus. Num tempo em que os museus deixaram de ser espaços fechados para elites intelectuais, o seu conteúdo passou a ser escrutinado de uma forma diferente e os visitantes passaram a poder também reagir às propostas curatoriais, decidir se gostaram ou não, tal como fazem com outras propostas artísticas e culturais. Para Smith, os visitantes de sítios patrimoniais e museus não são passivos. O que leva as pessoas a visitar esses lugares é, sobretudo, uma necessidade de sentir, de se emocionar, recordar o passado, associá-lo com o presente, atribuindo-lhe um sentido. Barbara Soren, num dos textos mais importantes sobre museus e emoções, publicado em 2009, indica vários casos interessantes de museus que trabalharam com as emoções dos visitantes. A autora salienta que o envolvimento com as comunidades pode trazer aspetos transformadores para os próprios museus, dando-lhes a possibilidade de oferecer aos seus visitantes “visões inexploradas no passado, ajudando-os a serem mais inclusivos, menos discriminatórios, reflexivos e emocionalmente capazes de mudar”.
Regressando ao objeto enquanto elemento central do museu. É essencial que este seja visto como um elemento mediador, não isolado mas em rede, uma rede capaz de incluir a materialidade mas também a imaterialidade: não esquecer que os objetos também nos vão moldando, pela sua durabilidade e perdurabilidade ao longo do tempo, através deles (fotos, artefactos, edifícios) fazemos uma ponte com o passado, influem o nosso modo de pensar, geram modas e dão-nos um sentido de pertença cultural.
Veja-se o trabalho de Arjun Appadurai e o modo como nos indica que os objetos têm sobretudo um fundo socializador. Em artigo sobre o críquete (desporto-rei na Índia) e sobre a forma como este passou de instrumento de colonização a instrumento de descolonização, Appadurai diz-nos que, para os antigos países colonizados, a “descolonização é um diálogo com o passado e não apenas um desmantelamento de hábitos e vidas coloniais”.
Esta ideia de diálogo vivo e híbrido com o passado também é amplamente explorada por Nestor García Canclini através da sua obra Culturas Hibridas. Nela, o autor argentino ressalta o papel essencial da mestiçagem na construção das relações sociais na América Latina. Não se trata, contudo, de uma visão de sincretismo cultural que nos fala de relações dialéticas entre duas identidades culturais muito distintas, pelo contrário, por mestiçagem ou mistura, Canclini centra-se numa relação multidialética: um processo de convivência comum entre o tradicional e o moderno e entre o passado e o presente. Podem os museus atuais estabelecer um mesmo tipo de diálogo?
As palavras nunca são em vão, e é importante, no contexto nacional, falar sobre museus e as suas dinâmicas. É importante mostrar novas ideias, experiências e conhecimento. Não obstante, é também importante fazer, pôr as ideias em prática e isso implica sempre fazer exposições… A exposição/instalação de Fred Wilson conseguiu ter mais impacto que vários escritos sobre a escravatura africana na formação da sociedade norte-americana. Não reescreveu a história, apenas (re)materializou a visão histórica do passado; esses objetos sempre existiram, faziam parte da História – não estavam, sim, representados nos museus –, outros estavam lá, mas expostos de outra forma.
Mas as emoções nem sempre têm de ser de choque para terem um efeito transformador no visitante, podem ser de surpresa, ao tentar perceber que objeto era aquele que não se via mas que podíamos tocar na exposição Museu das Descobertas do MNNA, ou de gáudio por perceber que estávamos certos quando pensávamos para nós que era uma figura zoomorfa de Bosch. Também descobrimos emoções das mais variadas formas através da beleza artística de um quadro ou na simplicidade de um artefacto de pedra, depende da perspetiva, mas também da disposição do objeto no espaço e no tempo.
Na vida, tal como no Museu, as palavras podem convencer, mas são os exemplos que arrastam… e é isso que esperamos por parte de quem tem o poder de tomar decisões.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico