O arrependido colaborador: um meio de obtenção da prova a tipificar em Portugal
A proposta de estatuto de arrependido colaborador que oferecemos está em estrita consonância com a lei portuguesa. Estatuto que urge fazer constar em letra de lei.
Na criminalidade organizada, até por razões meramente semânticas, importa que exista por regra comparticipação criminosa. Logo, pressupõe um largo número de diferentes agentes, com um maior ou menor nível de organização. Bem sabemos que quanto maior for o número de arguidos, ab initio, mais difícil será a investigação, não apenas pela exigência de mais recursos humanos no processamento do processo-crime, mas principalmente pela maior dificuldade de se estabelecer a recolha de prova para cada um. Pois poderão ter participações em diferentes condutas, mas todas elas integradoras da criminalidade organizada, fazendo aparecer os denominados megaprocessos que despoletam uma grave e atual dificuldade investigatória.
De modo a fazer face às referidas dificuldades são criados e utilizados vários instrumentos. Novos mecanismos de prevenção, recolha e produção da prova surgem de forma a atenuar tais dificuldades. Os quais são criados a nível nacional e internacional.
Apesar de todos os esforços da law in books e da law in action, as dificuldades investigatórias ainda se mantêm. A estratégia interna e internacional vai no sentido de se focarem nas medidas de prevenção deste tipo de criminalidade e da união entre os Estados, contudo, mesmo com este esforço, é um facto que o crime continua a acontecer de forma exponencial e as suas dificuldades investigatórias ainda persistem. Assim, têm surgido manifestações da necessidade de se colocar no seio do direito probatório em processo penal, a necessidade de colaboração do próprio investigado na recolha de prova do crime. Não que tal já não aconteça com a prova por declarações; contudo, o que estará em causa é um meio da obtenção dessas declarações, ou seja, a existência de benefícios ou benesses, ao arguido que, prestando declarações, decide colaborar com a investigação.
É inequívoco que o arguido não é obrigado a colaborar na sua própria investigação, por força do nemo tenetur ipsum acusare, constante da nossa lei fundamental, em especial como uma consequência da presunção da inocência e da estrutura essencialmente acusatória do nosso modelo de processo penal português. Mas se o quiser poderá fazê-lo. Nada o impede de colaborar na investigação, na recolha de provas ou que confesse de forma integral e sem reservas o crime por si perpetrado, que no julgamento equivale à renúncia da produção da demais prova, ou ainda que se arrependa da continuação da execução do facto ou que tente evitar a produção dos danos dele decorrentes. Resta saber em que condições o faz, qual a sua motivação e que implicações terá tal colaboração, quando este não seja o único investigado ou arguido.
Não negamos que esta forma de colaboração consiste, de facto, numa traição para com os outros comparsas do crime, mas devemos admitir que essa mesma traição é uma forma que o Estado usa para suprir a deficiência das suas capacidades de investigação, atenta a criminalidade organizada, que pelo pacto de silêncio que em muitas delas existe, mostram-se refratárias aos modelos tradicionais de prevenção e repressão.
O arrependido colaborador representará uma busca por um instrumento investigatório adequado à nova estruturação e sofisticação das condutas criminosas que operam nas organizações criminosas do nosso tempo. Restará determinar, entre a traição e a impunidade, qual delas deverá prevalecer.
Numa análise imediata e meramente superficial deste novo meio de obtenção da prova a tendência é responder negativamente à sua admissibilidade, a qual assenta basicamente na dificuldade de se aceitar que a investigação criminal seja prosseguida, através da colaboração de um arguido que atraiçoou os seu comparticipantes ou comparsas do crime; ou que se aceite que a investigação criminal conformada pelo seus ditames constitucionais – em especial a própria separação de poderes, a proibição da autoincriminação e da presunção da inocência – admita que se utilizem arrependidos de forma a conseguirem obter elementos de prova.
O facto de o nosso processo penal delimitar muito bem as diferenças entre quem pode investigar e julgar, por força do princípio da separação de poderes que a nossa CRP consagra em sede de processo penal, determinando que as diferentes fases do processo serão dirigidas e têm princípios informadores diferentes, impede que a investigação possa ser feita por particulares; mas não impede que seja feita por sujeitos processuais e até mesmo por alguns particulares, basta pensarmos no regime das ações encobertas, nas declarações de arguido e do assistente. Deve promover-se que a investigação seja feita pelo MP coadjuvado pelos OPC, mas nada impede que o arguido colabore na investigação, pois este, como sujeito processual que é, tem também o mesmo fim: a descoberta da verdade material.
Não se diga também que a figura do arguido colaborador periga a presunção da inocência ou a proibição da autoincriminação, pois tal colaboração, desde que livre e esclarecida dos seus contornos e efeitos, não gera qualquer tipo de proibição de prova. Mas importa determinar quais são os efeitos e de facto em que consiste essa mesma colaboração. Desde já, adiantamos, não poderá reduzir-se à compensação ou reparação dos danos, mas deverá antes resultar num auxílio importante ou até decisivo na investigação, terá de haver a demonstração de eficácia probatória com esta forma de investigação.
Já não são novas as manifestações da oportunidade em processo penal português, mas sempre direcionadas à pequena e média criminalidade e com o crivo judicial. As novas exigências de eficácia e necessidades investigatórias parecem tender a cada vez maior premência da sua utilização e validade. Aliás, é este o pano de fundo do direito interno e também do direito internacional.
O estatuto de arrependido colaborador que entendemos ser possível existir em Portugal deverá passar sempre pelo crivo do Juiz de Instrução Criminal e nunca o Juiz de julgamento ficará limitado na determinação da medida concreta da pena. O que propomos será uma atenuação especial da pena que apenas se repercute no limite abstratamente aplicável.
O resultado que o arrependido colaborador pode almejar é uma atenuação especial da pena. Significando, consequentemente, que o julgamento quanto a ele também prosseguirá, mas o seu arrependimento, colaboração ativa na recolha de prova neste tipo de criminalidade, poderá determinar uma pena mais leve do que aquela que será aplicada aos seus comparticipantes, por revelar uma diminuição do juízo de censura que sobre ele se possa emitir, atenta a sua colaboração com a justiça e a manifestação do seu arrependimento, como veículo necessário a essa colaboração
Atendendo aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade que trespassam todas as regras no processo penal e em especial no direito probatório, e que são manifestações do nosso Estado de Direito Democrático, será inadmissível tal novo meio de obtenção da prova?
No nosso entender não, desde que verificados alguns requisitos e pressupostos. Em especial a proporcionalidade, a necessidade estrita e a eficácia.
A proposta de estatuto de arrependido colaborador que oferecemos está, face ao exposto, em estrita consonância com a lei portuguesa. Estatuto que urge fazer constar em letra de lei.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico