Não somos uma ilha fora do mundo
Se a economia não pode parar, como vem insistentemente lembrando António Costa, o seu funcionamento não pode também deixar de ser enquadrado dentro do estado de emergência sanitária e social em que globalmente tendemos a viver
Ouvindo ou lendo alguns dos nossos comentadores encartados na TV e nos jornais sobre a crise do coronavírus em Portugal, podemos ficar com a sensação de viver em mundos paralelos ou situações fora do mundo. Fazem-se afirmações egocêntricas ou meramente ideológicas, de costas ostensivamente viradas para a realidade global em que estamos mergulhados. E há mesmo quem pretenda que o covid-19 e a globalização nada têm a ver entre si, uma vez que outras terríveis pandemias vividas ao longo dos séculos acabaram por afectar o conjunto da humanidade, muito antes da globalização propriamente dita. Em nome dos benefícios e da ideologia acrítica e deslumbrada da globalização pretende-se, assim, iludir uma realidade que entra pelos olhos dentro dos que, pelo menos, se recusam a ser deliberadamente cegos: a velocidade sem precedentes com que se estabelecem relações e interacções no mundo contemporâneo – desde as actividades económicas às viagens – acelera também de forma vertiginosa, exponencial, o processo de contágio das epidemias, tal como estamos a constatar sem margem para dúvidas ou exercícios de cegueira ideológica. Não é por maldade intrínseca da globalização mas porque as coisas são, globalmente, como são, por mais que isso custe a Trump, Bolsonaro e quejandos.
Entretanto, a declaração do estado de emergência suscitou reacções igualmente desprovidas de sentido. Não porque essa declaração esteja imune a críticas mas porque é disparatado fazer piruetas verbais para chamar a atenção quando o que está em jogo, na primeira linha, é a vida das pessoas. Não é uma guerra o que enfrentamos, como afirmaram, por exemplo, Marcelo Rebelo de Sousa ou o Presidente francês Emmanuel Macron? Não, não é uma guerra no sentido literal mas é-o num poderoso sentido figurado, uma guerra contra um «inimigo invisível» – e, por isso, ainda mais temível do que os inimigos visíveis. Além disso, critica-se aquilo que poderia ser o excessivo alarmismo da declaração do estado emergência – há mesmo quem lhe chame “estado de excepção” – por receio das suas consequências na economia. Ora, como lembrou Marcelo, “mais vale prevenir do que remediar”, e o estado de emergência preventivo ou “pedagógico” que o Presidente e o primeiro-ministro acabaram por acertar – independentemente das suas divergências prévias – parece ter tido um notório efeito tranquilizador sobre os portugueses, apesar das suas inevitáveis repercussões negativas. Resta apenas saber se e até onde faz sentido a mera gestão paroquial do problema económico, tendo em conta a avassaladora dimensão global do problema (como aliás temos visto ao longo dos últimos dias, com as velhas ortodoxias financeiras a serem postas em xeque). Ou se essa gestão poderia ser mantida num estado de sítio nacional idêntico ao que atingiu Itália e ameaça a nossa vizinha Espanha.
Se a economia não pode parar, como vem insistentemente lembrando António Costa, o seu funcionamento não pode também deixar de ser enquadrado dentro do estado de emergência sanitária e social em que globalmente tendemos a viver. Aliás, é esse estado que irá influenciar decisivamente as mudanças indispensáveis no modelo económico global para podermos enfrentar as crises futuras (nomeadamente a do sistematicamente menosprezado aquecimento do planeta). Como disse Macron, numa recente declaração aos franceses, “será preciso amanhã tirar lições do momento que atravessamos, interrogar o modelo de desenvolvimento em que há décadas o nosso mundo se envolveu e que agora mostra as suas falhas à luz do dia, questionando também as fraquezas das nossas democracias”.
Para o Presidente francês “o que revela esta pandemia é que há bens e serviços que devem ser colocados fora das leis do mercado. Delegar a nossa alimentação, a nossa protecção, a nossa capacidade de cuidar o nosso quadro de vida nas mãos de outros é uma loucura. (…) As próximas semanas e meses necessitarão de decisões de ruptura nesse sentido. Irei assumi-las”. Oxalá não seja apenas retórica de circunstância mas uma pedrada no charco deste nosso mundo cada vez mais globalizado, agora sobretudo por causa do choque do coronavírus, esse sismo que pôs tudo em xeque. Não, não somos uma ilha.