Revitalização das empresas e outras ideias. A justiça não pode ir de férias
Impõe-se assegurar um modo de resolução célere e imediato de processos urgentes, desde logo as insolvências e os PER, que permita salvaguardar a recuperação mais eficiente de credores e devedores. Por outro lado, nesta proposta procura-se limitar o acesso imotivado aos tribunais, com todas as consequências associadas.
As normas que definiram os serviços públicos essenciais no estado de emergência excluíram a Justiça. O que se definiu em matéria de prazos e diligências nos tribunais determinou, em termos de facto, a quase total paralisação da administração da justiça.
Se bem que discorde da posição adotada, compreendo. Naturalmente que, apenas, por um curtíssimo período inicial. De facto, algumas prioridades são mesmo prioritárias.
Porém, se queremos que a economia e as empresas – e, por tabela, as famílias – sofram o mínimo possível, é imperioso incluir a justiça nessa equação.
Os advogados – as grandes e as pequenas sociedades, e mesmo os advogados “em prática individual” – estão preparados. Muitos juízes, tribunais e o próprio Governo também. Com sacrifício e boa vontade, mas, sobretudo, com profissionalismo, tudo se faz.
Não gosto de criticar sem sugerir. Discuti com colegas (e não só) e constatei haver consenso quanto à ideia de que o país, apesar das medidas de proteção e estímulo à economia que têm sido adotadas, e bem, pelo Governo, não pode passar sem uma rápida agilização e adequação da resposta do setor da justiça.
Refiro-me sobretudo aos processos urgentes, desde logo as insolvências e os PER (Processos Especiais de Revitalização), que, como comecei por referir, se encontram suspensos. É discutível se todos os prazos estão suspensos ou não. A norma não é de compreensão evidente. Não obstante, o seu espírito é muito claro e vai nesse sentido. Aliás, há já decisões de alguns juízes do Tribunal do Comércio suspendendo o andamento das insolvências, o mesmo acontecendo quanto aos PER em curso e, naturalmente, aos potenciais que se antecipam.
O pacote de incentivos financeiros e económicos apresentados não resolve tudo e os seus estreitos critérios de acesso menos ajudam.
Neste domínio, é importante rever rapidamente o regime do PER, agilizando-o e tornando-o num instrumento que acreditamos poder vir a ter enorme utilidade nos tempos que se avizinham.
Elegemos este regime pois é aquele que, pela sua essência, já que reveste uma natureza essencialmente negocial e extrajudicial, imperando nele o primado da vontade dos credores, restando ao tribunal um papel residual, melhor se adequa aos novos tempos.
Com vista a preparar o PER para funcionar como meio que auxilie efetivamente nos próximos tempos as empresas é, antes de mais, necessário assegurar que, pelo menos quanto a tais procedimentos, os prazos judiciais continuam a correr. Aqui o Governo pode e deve agir rapidamente. Acreditamos que pode aqui fazer muito com pouco.
Importa igualmente adaptar as suas regras e procedimentos à lógica do teletrabalho em que quase todos já nos encontramos. Não apenas aqueles procedimentos cujo impulso compete aos tribunais, mas também aqueles que devem ser impulsionados pelos demais intervenientes: devedor, administrador judicial provisório e credores.
Perspetivando o que se acaba de referir, e revendo praticamente regra a regra, deixamos algumas sugestões para reflexão.
Como condição prévia de funcionamento de tudo o mais, entendemos que deve ser levantada a suspensão dos prazos e tramitação no que respeita ao PER. Aliás não só, se bem que aqui nos ocupemos essencialmente do PER. Com vista a preparar o PER para funcionar como meio que auxilie efetivamente nos próximos tempos as empresas é, pois, necessário assegurar que, pelo menos quanto a tais procedimentos, os prazos judiciais continuam a correr. De igual forma, por acordo entre os credores e o devedor, também deverão poder prosseguir os PER, PEAP e Planos de Insolvências pendentes à data da entrada em vigor da Lei n.º 1-A/2020, o mesmo sucedendo para o RERE.
Admitida essa condição devem então rever-se as regras permitindo, designadamente, que a declaração conjunta entre devedor e credores para dar início ao procedimento seja assinada por via eletrónica.
Relativamente à legitimidade para lançar mão deste importante meio, deverá passar a ser permitida também a apresentação a PER conjunto no caso de grupos de sociedades. De facto, no caso de grupos empresariais, só é sensato negociar com credores enquanto grupo sob pena de descoordenação e imensa dificuldade na estruturação e obtenção de acordos.
Noutra linha, por forma a evitar a consulta de documentos junto da Secretaria, que a lei exige presentemente, mas que a impossibilidade do atendimento ao público impede, parece-nos que o devedor que se apresente a PER deverá poder incluir na comunicação aos credores, após a nomeação do Administrador Judicial Provisório (AJP), o link relevante contendo toda a documentação junta aos autos. Isto é facilmente exequível, assim a lei seja ligeiramente alterada. A disponibilização da informação constante do processo deverá ser supervisionada pelo AJP, após a sua nomeação. Para o efeito, sugere-se a inclusão dos documentes num VDR (Virtual Data Room) controlado pelo AJP, assim se assegurando imparcialidade, fidedignidade e certeza.
Também de modo a agilizar o regime, importa substituir as comunicações por carta registada por correio eletrónico escrito. Do mesmo modo, as negociações devem passar a poder ser feitas por qualquer meio, incluindo o eletrónico, reforçando-se os deveres de supervisão do AJP. A realização de reuniões com credores deve ser feita por via eletrónica e com gravação. Os votos escritos podem ser apresentados via e-mail.
Os efeitos do Plano de Recuperação devem aplicar-se a todos os créditos, direta ou indiretamente relacionados com factos anteriores à nomeação do AJP, ainda que indemnizatórios ou litigiosos e apenas declarados após essa data.
Diria ainda que se deve permitir, excecionalmente, claro, atento o tempo em que vivemos, e pelo menos até 30/09/2020, que os devedores possam recorrer ao PER, ainda que não tenham decorrido dois anos sobre o termo das negociações sem sucesso de outro PER que tenham iniciado. É um obstáculo que está na lei e faz sentido para tempos normais. Não para estes.
Mas se procedimentalmente tudo quanto referi é importante para que tudo funcione não obstante os condicionalismos em que vivemos, importa deixar claro que há aspetos de natureza substantiva que devem merecer reponderação.
Desde logo o alargamento do privilégio creditório mobiliário geral até aqui admitido, na prática, apenas para a banca. Não há razão para apenas os créditos de bancos e entidades financeiras poderem dele beneficiar. Basta pensar que, como liquidez, pode ser fundamental, por exemplo, matéria-prima, energia, etc. Assim, também os fornecedores e outros prestadores de serviços que concedam crédito à empresa em PER que não sejam entidades financeiras devem aceder a tal vantagem.
Igualmente importante é introduzir como elemento de diferenciação específica entre credores o peso relativo dos mesmos na atividade e na recuperação futura da empresa. Apesar da regra geral do principio da igualdade do tratamento entre credores consagrar atualmente a possibilidade por razões objetivas, a verdade é que a jurisprudência tem sido restritiva neste domínio.
Faz igualmente sentido a atribuição de benefícios fiscais às entidades que financiam ou apoiam a recuperação da empresa. Trata-se de algo que escapa um pouco destas alterações mas que pode e deve ser equacionado. Para efeitos de obtenção de acordos faz todo o sentido suspender a indisponibilidade dos créditos do Estado, prevista na lei geral tributária, ainda que de forma temporária. Poderão ser introduzidas cláusulas de salvaguarda ou limites temporais.
Parece-nos ainda que as linhas de financiamento aprovadas pelo Governo – que, como se disse, têm um apertado regime de acesso – devem também poder ser aplicáveis ao financiamento da empresa após a aprovação do plano de recuperação, independentemente da situação tributária regularizada e de ter dívida vencida à banca por mais de 90 dias.
Finalmente, não tendo já que ver com o PER mas antes com a necessidade de acautelar situações sem amparo, já que, à semelhança de anteriores crises económico-financeiras, se antecipa um rápido incremento de litigância entre diversas contrapartes negociais que procuram o reequilíbrio das prestações contratuais à luz da nova realidade económica, social e financeira, deve ser ponderada a criação de um mecanismo de arbitragem necessária para resolução dos conflitos direta ou indiretamente relacionados com a alteração dos termos contratuais com fundamento na pandemia atual. Os litígios já estão a surgir e serão inúmeros os que não se resolverão amigavelmente. Basta atentar nos imensos escritos e publicações sobre “alteração de circunstâncias” e “força maior”.
É verdade que até os prazos das arbitragens (nacionais) foram suspensos, o que é absolutamente esdrúxulo. Porém, tal deve ser imediatamente revisto. Ainda esta semana que passou, enquanto se discutia alegremente na nossa praça a suspensão de prazos, a nível de arbitragens internacionais nada parou, ainda que o problema da pandemia tenha sido acomodado. Decorreram audiências complexas em assuntos internacionais, envolvendo várias testemunhas e permanente consulta de documentos, recorrendo ao Zoom e a outras plataformas. Tudo correu na perfeição.
A ideia é, pois, assegurar um modo de resolução célere e imediato deste tipo de litígios e que permita salvaguardar a recuperação mais eficiente de credores e devedores. Por outro lado, procura-se limitar o acesso imotivado aos tribunais, com todas as consequências associadas.
Em suma, se muito mais haverá a fazer, parece-me que tudo isto pode fazer sentido. Sem prejudicar o propósito do isolamento interpessoal que salva vidas, procuremos procurar também salvar as empresas.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico