A emergência da autocracia

Olha-se para a Hungria e vê-se o germe de um processo que, tal como a pandemia, se não for controlado, expande-se.

É hoje em dia quase ocioso voltar a invocar a horda de ‘líderes fortes’ que, ascendendo democraticamente, vão lentamente erodindo as instituições democráticas e impondo um arbítrio pessoal com laivos autoritários. Contudo, e como também já tem sido notado, um dos potenciais efeitos da pandemia de covid-19 é uma brutal aceleração da concentração de poder, por via das medidas tomadas ao abrigo de um estado de exceção que, a prolongar-se, pode tender a normalizar-se. Aliás, notar este efeito, e alertar para as suas potenciais consequências futuras, não significa, de todo, qualquer espécie de minimização da gravidade da situação de saúde pública que atravessamos.

Podem existir motivos fortíssimos para se decretar um estado de emergência, um amplo consenso político-institucional apoiado na auscultação da opinião pública, e uma gestão executiva particularmente prudente e zelosa da proporcionalidade das medidas tomadas. Todas estas condições se aplicam, por exemplo, ao caso português. E, no entanto, nada disto impede o precedente aberto para o futuro nem a inscrição do nosso caso numa tendência muito mais geral – e, repitamo-lo, entendível – de resposta extraordinária e, em maior ou menor grau, musculada, face à pandemia.

Assim, não me parece exagerado constatar que, em diversas partes do mundo, aquilo que ‘emerge’ também é uma forma particular de exercício de poder que, em certas circunstâncias, também favorece o recrudescimento das tendências autocráticas.

E não precisamos sequer de sair do espaço supranacional da União Europeia para ter razões muito fortes para estar pessimistas. Esta passada segunda-feira, Viktor Orbán conseguiu que o seu Parlamento aprovasse a extensão do estado de emergência e a permissão para governar por decreto por tempo indeterminado. Esta é uma consequência que nada tem de surpreendente. Em setembro passado, aquando de uma visita a Budapeste para um seminário organizado na Central European University, visitei o espaço da associação comunitária Aurora e ouvi os relatos de perseguição a várias associações cívicas e de direitos humanos; de como, com uma conivência não negligenciável da maior parte das instituições europeias (com a exceção ocasional do Parlamento Europeu), ao longo dos anos se assistiu à intimidação de vários setores da sociedade civil, silenciamento da oposição e da imprensa, captura de instituições anteriormente independentes, e até manipulação do poder judicial, num processo que foi paulatinamente concentrando e consolidando poderes nas mãos de Orbán.

Portanto, que o medo trazido pela covid-19, com a ênfase que coloca na restrição à liberdade de movimento e uma tolerância cada vez menor em relação a eventuais dissensos, tenha sido aproveitado para aprofundar o estado de paranoia, repressão e fechamento no contexto húngaro, deve ser lido como um desenvolvimento expectável; ainda que tudo se passe num país que, tal como não tinha problemas com as migrações e ainda assim se servia da figura do refugiado como bode-expiatório, também não tem, à data em que o Parlamento húngaro aprova este estado de coisas, se comparado com grande parte dos parceiros europeus, um número de pessoas afetadas pela doença que seja significativo.

E o problema é que desde há uma década que podemos olhar para a Hungria como o posto avançado desta tendência, entretanto alastrada ao grupo de Visegrado, e para todo este fenómeno como um sintoma que junta à falta de solidariedade intraeuropeia uma erosão dos direitos, liberdades e garantias que mantêm a democracia viva. Olha-se para a Hungria e vê-se o germe de um processo que, tal como a pandemia, se não for controlado, expande-se.

Não há razões para pensar que a situação portuguesa de hoje tem qualquer tipo de semelhança com a húngara, nem seria nunca minha intenção sugeri-lo. Mas neste momento de catástrofe global com epicentro momentaneamente europeu, é importante perceber que juntar à crise de saúde pública (e à crise económico-social que se lhe seguirá) uma derrocada da democracia seria o suficiente para inaugurar para toda uma geração novos tempos sombrios, tempos de um género que a Europa pensou nunca mais ter de voltar a viver. E em relação a essa possibilidade talvez não convenha acalentar grande esperança de excecionalismo ou imunidade.

Por outras palavras: face às crises que assolam a Europa, sejam elas a crise pandémica, a económico-social que se lhe seguirá, ou a da democracia, não vale a pena pensar como portugueses ou húngaros, mas como europeus. E se a nossa voz se levanta, com fundada indignação, contra a falta de solidariedade europeia para com Itália ou Espanha face à tragédia causada pela covid-19, conviria também não esquecer todos aqueles, a começar pelos húngaros, para quem o espaço democrático se cerceia cada vez mais. Até porque essa crise pode muito bem vir a ser, um dia, a de quase toda a Europa. Para que esse dia não chegue, também outro dever, o de vigilância democrática crítica e ativa, começa em cada um de nós.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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