O isolamento, outra vez

Testemunho de Sandra Barão Nobre. “Desta vez, absolutamente só em casa, sinto-me tristemente acompanhada pelo resto da humanidade — o que fizemos nós das nossas vidas?”

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paulo pimenta

Por volta das 18h30, a luz dourada que entra pela janela à minha direita obriga-me a desviar o olhar até então fixo no ecrã do computador. Levanto-me, caminho até à saída para o terraço e encosto-me à ombreira de madeira. Valorizei sempre estes metros quadrados de rua que tenho dentro de casa. Hoje, isolada voluntariamente há quase um mês, valorizo-os ainda mais. Vejo o sol mortiço e apercebo-me do silêncio.

O vírus trouxe também o silêncio. Levada por ele, a minha memória segue até aos dias de outro isolamento — não social, não voluntário — a que fui sujeita durante meses para travar outra batalha: debelar uma leucemia aguda. E dou-me conta, com uma ponta de ironia, dos paralelismos entre estas duas experiências: as máscaras cirúrgicas para tapar nariz e boca, as batas, as luvas e a protecção para o calçado usadas obrigatoriamente por quem entrava no meu quarto e que eu mesma usei sempre que saí para exames noutros serviços do hospital; a desinfecção do quarto, todos os dias pela manhã; as roupas que não se usavam mais do que uma vez; as regras para lavar as mãos expostas em todo o lado; as visitas dos amigos e da família através da janela do quarto que dava para uma área exterior do hospital; as palavras de incentivo — “vai ficar tudo bem, tens de ser forte, vais superar, tens de ter paciência, tens de ter esperança, tens de manter o ânimo”; a travagem a fundo do meu ritmo de vida, a paragem de todos os projectos, a alteração de quase todos os hábitos e de quase todas a rotinas; a vaga de questionamentos e a inevitabilidade dos balanços: que fiz eu da minha vida até aqui?

Rodeada dos melhores cuidados médicos a que alguma vez tive acesso, de todo o amor, amizade, solidariedade e companhia (a minha mãe passou esses meses comigo), julgo que nunca me senti tão só. Lá fora a vida continuava: os médicos e os enfermeiros voltavam para as suas famílias no fim dos seus turnos, os meus familiares (carregando uma imensa tristeza, eu sei) prosseguiam com as suas vidas, os meus amigos tinham filhos, os meus colegas desempenhavam as suas tarefas de segunda a sexta-feira, faziam-se viagens, planeavam-se casamentos. E eu fechada num quarto minúsculo, deitada numa cama, à espera que o meu corpo reagisse à violência de três ciclos de quimioterapia e ao posterior autotransplante de medula óssea. A viver na prática aquilo que sabia há tanto tempo em teoria: também sou frágil e a maior parte das coisas foge ao meu controlo.

Nada mais voltou a ser como dantes.

Vejo o sol descer, esconder-se atrás do bloco de apartamentos, lá longe, e reparo que as árvores dessa rua já têm folhas. Não me lembrei de olhar para a copa das árvores da minha rua antes de me fechar no apartamento. Talvez já tenham folhas também, como as muitas plantas do meu terraço que florescem. Gaivotas sobrevoam o terraço. Há pombos e pardais. Um casal de pegas. Fazem-se ouvir ainda mais à medida que os meus vizinhos se recolhem em casa, o comércio fecha e o trânsito cessa. Paira sobre tudo algo a que gostaria de chamar paz. Mas entendo agora que a paz — exterior ou interior — é um valor que exige a iniciativa da busca, não a imposição. Exige um caminho nunca terminado, de mãos dadas com a alegria. Não um prazo aliado ao medo. Desta vez, absolutamente só em casa, sinto-me tristemente acompanhada pelo resto da humanidade — o que fizemos nós das nossas vidas?

Ficou tudo virado do avesso e esse avesso parece, ao menos, ter-nos endireitado os corações, que caminham agora em uníssono nos trilhos da coisa que mais importa — saber das pessoas, cuidar das pessoas, pedir que as pessoas cuidem de si. E repito o mantra: vai ficar tudo bem, temos de ser fortes, vamos superar... Porém, indiferente ao maior dos nossos tormentos, está agora o resto da natureza, que segue a sua vida com menos sobressaltos. Aos humanos parados é dada a oportunidade para aceitar outra evidência esmagadora: este planeta passa bem sem nós.

Seria bom que, depois disto, muita coisa não voltasse a ser como dantes.

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