Recuperar as nossas vidas, em segurança

O sucesso na proteção da população mais idosa e dos profissionais que deles cuidam será condição necessária para assegurarmos, nos próximos meses, a minimização dos impactos de uma provável segunda vaga da covid-19.

O país vive dividido entre a vontade de resistir à ameaça da doença desconhecida e o medo, cada vez maior, de um futuro dominado pela incerteza. A cada dia que passa fazemos o balanço na conta-corrente com o tempo das nossas vidas subitamente interrompido sem aviso.

Aproxima-se o momento das decisões mais difíceis. Terá sido, sem dúvida, menos complexo o processo de confinar e de restringir do que será a decisão de devolver o país, ainda que de forma gradual, ao seu ritmo e rotinas de normalidade. Muitas serão as questões que se vão colocar quando chegar esse ansiado momento. Temos de garantir, no entanto, que os resultados alcançados até aqui não são comprometidos pondo em causa a nossa estratégia de defesa coletiva.

Temos de regressar às nossas vidas, não podemos deixar de o fazer. Seguramente de maneira diferente, com novos modelos de organização do trabalho, do ensino, e até mesmo num modo distinto de nos relacionarmos socialmente.

Nesta fase, importa desenhar o melhor plano possível protegendo todos com critério, mas atribuindo prioridade absoluta aos idosos e aos grupos populacionais mais vulneráveis.

O sucesso na proteção da população mais idosa e dos profissionais que deles cuidam será condição necessária para assegurarmos, nos próximos meses, a minimização dos impactos de uma provável segunda vaga da covid-19. Para além dos planos e procedimentos setoriais e institucionais, das medidas de proteção individual e comunitária, o foco principal tem de estar, obsessivamente, concentrado na população mais idosa.

Os idosos, sobretudo os mais frágeis e institucionalizados, deverão manter os cuidados de proteção individual e institucional até que os riscos de transmissão da doença estejam controlados ou que exista algum tratamento eficaz, ou vacina especifica.

O prolongamento e, nalguns casos, o aprofundamento das medidas de proteção deste grupo populacional representa uma condição socialmente exigível tanto no plano clínico, social e humano como, inclusivamente, na dimensão ética do problema.

Neste contexto, não podemos, contudo, ignorar o sofrimento adicional que representa para estas pessoas o prolongamento do distanciamento social e familiar com as inevitáveis consequências físicas e mentais associadas. A coexistência de múltiplas morbilidades, de elevados graus de dependência e de baixo nível de enquadramento social e afetivo tenderão a ser agravados.

A vulnerabilidade dos idosos, nesta como em outras emergências, resulta quer da redução das suas diversas capacidades funcionais, quer da profunda alteração das condições ambientais e disrupção de acessos vários (alimentos, medicamentos, cuidados de higiene) com que contavam no dia a dia. Apesar da ampla oferta de cuidados assistenciais à distância, a cessação da generalidade das consultas médicas presenciais, quer hospitalares, quer nos cuidados de saúde primários, aliada aos receios e desconfianças sobre o recurso aos serviços de urgência sinaliza uma preocupação. A complexidade de patologias e do risco, consequente, de necessidades de saúde não satisfeitas requer uma particular atenção no curto prazo.

Esta realidade exige o delineamento de um plano integrado e duradouro de proteção dos nossos idosos, bem como dos diferentes grupos vulneráveis. Nesta nova fase será necessário, mais do que nunca, juntar, unir, cooperar entre todos. A mobilização dos recursos públicos, do setor social e cooperativo, das IPSS, da comunicação social, das Forças de Segurança e dos Bombeiros, das autarquias e das instituições religiosas.

O envolvimento de todos num plano específico de proteção à população mais idosa e aos grupos particularmente vulneráveis representa um ato de justiça e de solidariedade que defende o conjunto da sociedade. Esta abordagem será decisiva no processo gradual de recuperação da atividade económica e, consequentemente, da atenuação dos riscos de rotura social e de crise sistémica.

A realização de testes ou a utilização de máscaras de proteção são muito importantes no controlo da propagação da infeção. No entanto, estas medidas representam apenas uma pequena parte do caminho para o sucesso coletivo na luta contra a covid-19. A maior parte desse sucesso será devido, seguramente, ao contributo que cada um de nós for capaz de dar por si próprio. Este é verdadeiramente o momento de pensar nos outros, naqueles que dependem de nós, pela vulnerabilidade da sua condição de saúde. Também porque este grupo populacional estará na primeira linha dos efeitos nefastos de uma inevitável crise económica que, como sempre, afetará injustamente os mais frágeis.

No início de março iniciámos um caminho que se antevê muito longo e particularmente exigente. A mudança nos nossos hábitos, atitudes e comportamentos tem de prosseguir, com empenho reforçado, para que consigamos, todos juntos, recuperar as nossas vidas, em segurança.

Jaime C. Branco, Médico Reumatologista, NOVA Medical School, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade NOVA de Lisboa; Adalberto Campos Fernandes, Médico Saúde Pública, Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade NOVA de Lisboa

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