Classificação dos solos e calendário político – tempo de bom senso?
Em matéria de política territorial, e porque nada em 2020 pode mais ser o que se pensava que seria, recomenda o bom senso que se suspenda o processo de classificação dos solos em curso.
A política, necessária e intrinsecamente conformada pelas possibilidades e contingências que se lhe abrem ou impõem, é sempre produto do seu tempo. Por isso, a virtude das opções políticas não se afere em abstracto. As opções políticas só em concreto podem estar certas, considerando um quadro de alternativas concretas para atingir fins concretos. O que hoje é adequado, amanhã pode não ser. O que hoje responde a um imperativo de interesse público, pode amanhã ter de ceder perante novas e mais determinantes variáveis de um tempo político que não é sequer possível antecipar.
Com o direito e as leis, emanações do exercício do poder político, também assim é. Porque é a circunstância concreta de cada sociedade que dá expressão efectiva ao que, em função de necessidades e aspirações, condicionantes e recursos, pode e deve decorrer do contrato social de base para se converter, em cada momento, na resposta jurídica ao que a sociedade reconhece como colectivamente relevante, necessário e devido. E porque só a circunstância concreta evidencia aquilo de que mais decisivamente depende o acerto ou o desacerto das políticas definidas e do direito que lhes dá corpo: as prioridades de cada tempo e de cada lugar.
Vem tudo isto a propósito – imagine-se! – de solos, de política de solos, de classificação dos solos e de opções tidas por inadiáveis em matéria de solos, neste nosso Portugal de 2020. Em suma, está em causa a concreta aplicação de um regime jurídico, aprovado em 2014, que determina, depois de várias actualizações do calendário, a necessidade de ficar decidido, até ao próximo dia 13 de Julho, de forma definitiva e de reversibilidade dificultada por opções assumidas em paralelo pelo mesmo regime jurídico, qual o universo de solos que, de norte a sul do país, poderá continuar a gozar do estatuto de solo urbano. Em palavras mais simples: a aplicação de um regime jurídico que virá definir o universo de terrenos que manterá vocação construtiva, circunscrevendo a esses terrenos qualquer possibilidade futura de urbanização e edificação.
Sem entrar em tecnicalidades aqui deslocadas, o estabelecimento dessa nova fronteira entre o urbano (“aedificandi”) e o rústico (“non aedificandi”) dirige-se, fundamentalmente, a uma categoria de solos historicamente identificados como “urbanizáveis”, aqueles que não sendo ainda urbanos em sentido pleno têm vocação para vir a sê-lo e têm já mesmo programada essa destinação urbana. São, à escala do país, muitos milhares de hectares, que geram hesitações recorrentes em sede de planeamento territorial, bem como impasses e dificuldades frequentemente inultrapassáveis no contexto do licenciamento municipal de operações urbanísticas. E são, não há como iludir essa implicação maior, um universo de activos altamente sensível em matéria de avaliação, permitindo dúvidas e equívocos com impactes financeiros e contabilísticos reconhecidos e sérios.
Por tudo, a opção política de 2014 não merece aqui reparo. Pelo contrário, assentou num racional claro, enfrentando um problema há muito identificado e nunca até então resolvido, assumindo uma visão sobre as necessidades do território e da respectiva gestão. Mais: teve a coragem de não se deter perante o óbvio incómodo causado a interesses instalados, os quais, muito transversais – dos proprietários localmente influentes aos grandes proprietários institucionais, de alguns municípios e da sua associação à plêiade de técnicos e “facilitadores” que gravita em redor de cada projecto, de cada investimento, de cada opção de planeamento ou licenciamento –, tudo fizeram no sentido de travar a alteração do statu quo.
Seja como for, o tema não é, hoje, a opção política de 2014. O tema é manter-se, hoje, o calendário definido para a sua aplicação em 2020. Porque nada em 2020 pode mais ser o que se pensava que seria. E, talvez menos ainda, o que se pensava que devesse ser. Com o país focado no combate a uma pandemia chegada sem aviso, fechado e paralisado por um regime de emergência sem precedentes, com uma crise económica de proporções desconhecidas instalada e sem fim à vista, será tempo de a Administração Pública portuguesa se concentrar nesta tarefa exigente e difícil de traçar fronteiras que marcarão as possibilidades de desenvolvimento do território durante longos anos? Será que a economia aguenta o embate de ver fechados caminhos e alternativas de futuro, ainda por cima com a implicação de uma drástica depreciação do valor dos activos? Quem pode decidir adequadamente em 2020 sobre matérias que terão consequências sérias e determinantes sobre os cenários de desenvolvimento regional nos próximos anos? Quem pode antecipar as necessidades, a capacidade de resposta da economia e da sociedade, os sectores que poderão liderar a recuperação, as localizações mais decisivas para a afirmação dessa reacção colectiva à adversidade presente? Será tempo de fechar portas e de rigidificar as hipóteses de o futuro começar a dar sinais de querer acontecer? Ou, pelo contrário, será de manter tudo em aberto, sem pôr em causa o sentido da evolução política e legislativa em matéria territorial definido em 2014, mas percebendo que 2020 é o tempo da gestão da emergência e que as reformas de fundo supõem normalidade e requerem estabilidade?
“Para tudo há um momento e um tempo para cada coisa…”, diz-nos o Eclesiastes. A exigência de 2020 não permite dúvidas, é tempo de opções claras e de dar prioridade ao que é prioritário. É tempo de uma política capaz de ponderar interesses e, acima de tudo, de bom senso.
Bom senso que, em matéria de política territorial, significa a suspensão do processo de classificação dos solos em curso e a remissão da sequência para depois da crise.