Por favor, não deixem morrer a minha mãe
Será racional e socialmente aceitável instituir a regra de que, à falta de recursos médicos, devemos, para bem da sociedade, deixar sempre morrer os mais velhos e salvar os mais novos, devido a expectativas diferentes de esperança média de vida?
Já aconteceu em Itália e em Espanha e poderá acontecer em Portugal se, devido à pandemia de covid 19, o sistema de saúde chegar a um nível de saturação em que não seja possível tratar todos os doentes por falta de equipamentos (ventiladores, por exemplo), incapacidade logística ou humana. O que fazer? Qual o critério para dar prioridade a uns e deixar morrer outros?
Em Itália, a Sociedade Italiana de Anestesia, Analgesia, Reanimação e Cuidados Intensivos (SIAARTT) recomenda que se dê prioridade aos “pacientes com maiores probabilidades de êxito”, admitindo a possibilidade de “ser necessário estabelecer um limite de idade na entrada” dos cuidados intensivos. Em Espanha, a Sociedade Espanhola de Medicina Intensiva e Crítica e Unidades Coronárias (SEMICYUC) aconselha que se “dê prioridade à maior esperança de vida com qualidade” e acrescenta outros factores, como a idade, a comorbidade (pacientes com outras doenças), gravidade e a reversibilidade. Poderíamos aceitar estes critérios e até adoptá-los para Portugal?
Penso que não. E procurarei responder à questão sob o ponto de vista ético.
Sob este ponto de vista, costumamos arrumar as convicções filosóficas em duas importantes perspectivas: o consequencialismo ou utilitarismo e o deontologismo. Segundo os utilitaristas ou consequencialistas, o valor moral de uma acção reside nas suas consequências ou resultados. Para os utilitaristas clássicos (como Jeremy Bentham e Stuart Mill) uma acção é moralmente boa quando maximiza imparcialmente o prazer ou a felicidade geral, depois de ponderados os prejuízos e benefícios que a sua realização trará a todos os envolvidos. Para os utilitaristas contemporâneos, a maximização imparcial desse bem-estar deve permitir a satisfação dos desejos ou preferências de todos os seres afectados pela acção ou suas consequências — utilitarismo das preferências (Peter Singer) —, ou ser orientada por regras que promovam imparcialmente esse bem-estar — utilitarismo das regras.
Assim sendo, à luz desta perspectiva, a decisão de salvar ou deixar morrer um ser humano deve ser tomada depois de avaliadas as consequências de tal decisão. Há duas mulheres com covid-19 a precisar de cuidados intensivos (CI): Antónia, 43 anos, com dois filhos menores, e Maria, 75 anos, com dois filhos casados. Ambas autoconscientes, sociáveis e com ideias ou projectos para o futuro. Não têm comorbidades e têm o mesmo grau de gravidade e reversibilidade. Só há recursos médicos para uma. Quem deve entrar nos CI e quem deve ficar de fora? Segundo a perspectiva consequencialista, deve entrar a mulher de 43 anos. Supostamente porque, assegurando a sobrevivência da mulher de 43 anos, e ponderados os prejuízos e benefícios, haveria uma mais elevada maximização da felicidade geral (ou desejos e interesses) na sociedade — é mais saudável para trabalhar, para criar os filhos, mais útil para a sociedade. Ao que tudo indica (excluindo situações irreversíveis), esta foi a fundamentação para as propostas da SIAARTT italiana e da SEMICYUC espanhola.
Gostaria de dizer que me oponho a esta perspectiva.
Mesmo sob ponto de vista do utilitarismo das regras seria questionável: será racional e socialmente aceitável instituir a regra de que, à falta de recursos médicos, devemos, para bem da sociedade, deixar sempre morrer os mais velhos e salvar os mais novos, devido a expectativas diferentes de esperança média de vida?
A escolha entre salvar ou deixar morrer uma pessoa em casos extremos, apoiada na ponderação das consequências é, obviamente, discutível. Não só pela dificuldade em avaliar as consequências — e se a mulher de 75 anos fosse médica? —, mas, acima de tudo, por questões de justiça e direitos individuais, acautelados pela ética deontológica. Na perspectiva do filósofo deontologista Kant, o valor moral de uma acção não reside nos seus efeitos ou consequências, mas em princípios racionais e incondicionais, válidos universalmente, que respeitem a autonomia (capacidade racional da pessoa para fazer escolhas e tomar decisões) e a dignidade de cada ser humano. É a definição desses princípios ou regras que deve servir de modelo para todos e que permite que não se transformem os outros em simples meios ao serviço dos nossos interesses pessoais ou sociais.
À luz desses princípios, o valor da vida humana não é relativo (à idade, à capacidade física, à sua utilidade social), mas absoluto. Isto é, não tem preço. É assim que Kant define a dignidade humana. E foi assim que se instituíram, em 1948, os direitos humanos, mormente o direito à vida, que não está sujeito a quaisquer condições. Se instituirmos que todos os seres humanos têm direito à vida (seria uma regra racionalmente aceite por todos e não instrumentalizaria nenhum ser humano), então a Antónia e a Maria teriam o mesmo direito de assistência médica, no hipotético caso citado. Ora, a avaliação do valor da vida humana pela perspectiva utilitarista não assegura esse direito. Como resolveríamos então o dilema, sabendo que não tínhamos recursos para curar as duas pessoas? Poder-se-ia, quem sabe, apelar à solidariedade de um dos pacientes ou, então, realizar um sorteio.
Claro que, na vida real, dificilmente estamos disponíveis para compatibilizar as nossas intuições e emoções, com critérios ético-racionais devidamente fundamentados, como os descritos acima. Por outro lado, como afirma Peter Singer (Ética Prática), “não podemos, normalmente, prever todas as complexidades das nossas escolhas”. Visto que, na vida real, além (ou antes) de pensarmos, também amamos, odiamos, estabelecemos relações de proximidade e relações de interesses.
Se Maria fosse minha mãe e excluída dos CI, eu — um defensor da igual dignidade de cada ser humano que aceitaria o referido sorteio — acho que, impulsivamente, teria que gritar, com todas as minhas forças: “Por favor, não deixem morrer a minha mãe!”