Cozinhar, Zoom, limpar, Teams, arrumar, Skype
Paulo Bernardino Ribeiro, responsável comercial e de desenvolvimento na Enza Zaden, empresa obtentora de variedades de espécies hortícolas. “Muitas das pequenas empresas com estrutura familiar, ainda a recuperar da crise anterior, terão, nos próximos tempos, o desafio enorme que é sobreviver com um expectável menor volume de vendas.”
No fim da tarde de 6 de março, estava entre Sines e Porto Covo, olhava a imensidão do oceano à minha frente. A cabeça estoirava já em angústia, como aquelas ondas nas escarpas. Era sexta-feira e regressava a casa depois de três dias de reuniões com colegas espanhóis e italianos, ui. Ainda não estava decretado o confinamento e os miúdos terminavam mais uma semana de aulas, não sabiam ainda que seria a penúltima deste ano letivo. As aulas e as brincadeiras com os amigos acabaram uma semana depois, a 13. Entrei ansiosamente em reclusão voluntária no sábado, 7.
Nesses primeiros dias de março, devorei toda a informação disponível sobre sintomas e períodos de incubação, entremeando com os relatos apocalípticos vindos de Itália e Espanha. Emocionalmente, esses dias foram os mais difíceis de digerir. Para amenizar um pouco as coisas, os filhos, a Catarina, de 11 anos, e o Dinis, de oito (previsivelmente, fará os seus nove ainda em quarentena, no início de maio, com direito a zooms prolongados), já estavam em casa. A Marta, minha mulher, bióloga, começava também a “perder uma época de campo” para observação de espécies florísticas apenas identificáveis em efémeros períodos de floração.
OK, respirar, concentrar e começar a organizar, que isto de ficar acordado até às tantas (a espreitar o worldmeters.info em busca de atualizações da evolução dos números do coronavírus) definitivamente não faz bem à saúde. Entre os quatro, conversámos, tentando, em simultâneo, entender e explicar a situação insólita em que iríamos viver os próximos tempos e tão inédita para nós, pais, como para eles, filhos. Aqui, foi vê-los a crescer em importância e responsabilidade, em pé de igualdade connosco: “Vocês nunca tinham estado em quarentena?” “Uau!” Cozinhar, Zoom, limpar, Teams, arrumar, Skype, telescola, para os quatro, em doses diárias, cada um a seu tempo ou todos ao mesmo tempo (!) é a norma da quarentena.
Como comercial e técnico de desenvolvimento de variedades de espécies hortícolas entre as quais alface, tomate, pepino, abóbora e a generalidade dos vegetais que encontramos na secção dos frescos nos supermercados, ou cá fora, nas caixas de madeira das mercearias de bairro, vou mantendo contacto com a produção. Que, felizmente para todos nós, não tem parado. Incrédulos ao início, cautelosos depois e agora apreensivos (abusando indecorosamente de generalizações simplistas), assim fui apreendendo o estado de espírito de quem trabalha para nos alimentar. Os novos padrões de aquisição de bens por parte dos consumidores, idas menos frequentes ao mercado, limitam os volumes de venda de frescos: compramos 12 litros de leite, mas não compramos 12 alfaces, compramos uma.
Muitas das pequenas empresas com estrutura familiar, ainda a recuperar da crise anterior, terão, nos próximos tempos, o desafio enorme que é sobreviver com um expectável menor volume de vendas. Empresas com maior capacidade, em que o grande mercado é a exportação, vivem o dilema do momento: por um lado, sentem que podem manter o escoamento da produção (o Centro e Norte da Europa, apesar de tudo, continuam a consumir. Itália e Espanha, os grandes exportadores para estes destinos, são também os países europeus com mais danos causados pelo vírus e previsivelmente os mais massacrados pelos efeitos da quarentena, ao nível da produção); por outro lado, as mesmas empresas com expectativas de crescer e escoar sentem dificuldades tremendas em contratar mão-de-obra. Com a limitação de circulação de pessoas, este é um problema enorme que têm entre mãos.
Destas sete semanas, guardo momentos únicos e felizes. Joguei ao berlinde, ao pião e à macaca com os miúdos. Eu e a Marta voltámos às maratonas de cinema como nos tempos do King (obrigado, Medeia!). E descobri um mundo imenso na arte de fazer pão! Destes estranhos tempos que vivemos fica uma certeza irrefutável: jamais ouviremos a palavra “quarentena” sem evocarmos estes tempos...