Covid-19. Subitamente aconteceu o (in)esperado

O futuro vai trazer-nos mais surtos pandémicos, com maior frequência e quiçá maior gravidade, até porque vírus bem mais perigosos andam por aí. Mas a espécie humana irá vencer mais este desafio. Terá é de sair desta crise um pouco mais sábia.

A tradição já não é o que era. Era senso comum dizer-se que sofríamos três pandemias por século. Foi o que aconteceu, por exemplo, no século passado, sempre com vírus Influenza: H1N1 em 1918 (gripe espanhola); H2N2 em 1957 (gripe asiática); H3N2 em 1968 (gripe Hong Kong).

Acontece que apenas entramos na terceira década do presente século e já fomos contemplados com quatro surtos epidémicos e dois pandémicos. Os primeiros foram as epidemias do SARS (Ásia, 2002-2003), MERS (Médio Oriente, 2012), Ébola (África ocidental, 2013-2016) e Zika (América do sul, 2015-2016). Quanto às pandemias tivemos a da gripe AH1N1 em 2009 e agora a covid-19.

Daí a bondade da pergunta: apesar da muito favorável evolução económica, social e sanitária da humanidade, porquê este aparente acentuar de surtos infecciosos?

A resposta é complexa porque multicomponencial. Ela assenta, sobretudo, em três características da humanidade no mundo globalizado: a destruição dos habitats naturais com a redução e stresse dos nichos ecológicos dos animais selvagens (todos estes surtos resultaram da transmissão de microrganismos patogénicos do animal ao Homem), a demografia e a sobrepopulacão, e a facilidade e rapidez com que nos deslocamos por um mundo cada vez mais aberto, com menos fronteiras. Estes fatores são fortemente favorecedores da transmissão dos vírus respiratórios, e se o nosso modelo de desenvolvimento se mantiver com as atuais características é inexorável que surtos infecciosos pandémicos sofram um significativo incremento nos anos vindouros.

A globalização, sistema de aprofundamento das relações comerciais, económicas sociais, culturais e políticas entre os diversos povos espalhados pelo planeta – tido por muitos como iniciado no século XX – é um processo que teve o seu início na alvorada do percurso histórico do Homem. Vê-lo apenas como um processo económico é, no mínimo, redutor. De facto, o Homem, desde sempre, ao calcorrear o planeta em viagens extraordinárias foi ligando entre si os diversos grupos populacionais, então dispersos. Mesmo quando aprendeu a dominar as sementes e a domesticar os animais selvagens – o que lhe permitiu iniciar o processo da sedentarizacção – tal não impediu que continuasse a manifestar as características muito humanas das viagens pelo planeta, das trocas de produtos e do intercâmbio dos usos e costumes.

Aos primeiros aglomerados habitacionais em permanência –​ Çatalhüyúk, na Anatólia e Jericó na Cisjordânia, entre 9.000 e 7.000 a.C. – seguiram-se cidades cada vez maiores, depois nações e países e por fim impérios e civilizações. Porém, neste processo iniciado há 12.000 anos houve sempre uma linha condutora característica a humanidade: uma extrema curiosidade e uma vontade constante de descoberta. O nosso propósito, como espécie – para além da sobrevivência e da preservação – foi sempre o do encontro com o espaço desconhecido e com o outro – encontro com outras civilizações – às vezes com péssimos resultados, diga-se. São essas características que um dia, se tudo correr bem, nos impulsionarão em direção às estrelas.

Em vez de nos termos autointitulado de sapiens (sábios, que não somos) deveríamos ter escolhido Homo curiosum (curiosos, que efetivamente somos). Foram a curiosidade e o desejo de descoberta que nos fizeram calcorrear todo planeta e a misturarmo-nos uns com os outros, no sentido literal, incluindo o biológico E essas características são o melhor de nós, como espécie.

Nesse passado houve dois momentos paradigmáticos de aproximação dos povos em direção à globalização: as rotas da seda e as viagens dos povos ibéricos.

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Covid-19: para além da insegurança, do medo, das mortes e de uma economia destroçada, há uma mensagem de esperança a reter REUTERS/Edgard Garrido

Quer as rotas da seda – ligando por terra e por mar a Ásia ao Próximo Oriente, à África e à Europa – quer as viagens dos povos ibéricos – à África, à Ásia e à América – muito para além do seu objetivo primeiro, o das trocas comerciais e da conquista, trouxeram consigo, entre muitas outras coisas, uma nova compreensão do mundo e uma outra aceitação de etnias, religiões e culturas diferentes. Constantinopla, Veneza ou Lisboa eram, por essa altura, o paradigma das cidades multiculturais e cosmopolitas.

O que é que isto tem a ver com as epidemias? Tudo! É que nas suas viagens pelo planeta o Homem não transporta consigo apenas os seus genes, a sua cultura, a sua religião, ou os seus produtos comerciais; transporta também os seus germes.

Foi o que aconteceu no passado, está a acontecer no presente e acontecerá (cada vez mais, ouso vaticinar) no futuro.

Sabemos que no passado os microrganismos foram a causa de imensas tragédias. Por exemplo, a da peste negra, no século XIV. Trazido da Ásia central através das caravanas e embarcações das rotas da seda, esta bactéria – mais tarde denominada Yersinia pestis –​ no seu trajeto para ocidente provocou a morte a mais de duzentos milhões de pessoas, cinquenta dos quais europeus, um terço da população deste continente. Esta epidemia foi de tal forma marcante que, para além do impacto demográfico, provocou uma mudança de paradigma das condições económicas, laborais e da organização social da Europa de então.

Outro exemplo aconteceu com o vírus da varíola, microrganismo que contribuiu para a queda de impérios, como o império romano (para além das invasões bárbaras Roma viu-se confrontada com vários surtos epidémicos de varíola que muito contribuíram para o seu ocaso civilizacional) e, até para a extinção de civilizações, como aconteceu com os Incas e os Astecas, povos dizimados por esse vírus trazido para a América pelos conquistadores espanhóis e para o qual não tinham qualquer imunidade ou capacidade de resistir. O vírus da varíola chegou a ser utilizado como arma biológica pelos espanhóis, quando estes se aperceberam dos seus efeitos devastadores nas populações ameríndias.

Se foi assim no passado, o futuro prepara-se para nos trazer eventos semelhantes ou piores. Basta ter em atenção duas realidades que presentemente nos caracterizam: a nossa atual demografia e a facilidade com que nos deslocamos por todo o planeta. Vejamos a primeira. Apesar de sermos uma espécie inteligente, capaz dos feitos mais notáveis, não fomos capazes de controlar o nosso crescimento. Somos muitos e vivemos cada vez mais em cidades gigantescas com muitos milhões de habitantes (existem 30 cidades com mais de 10 milhões de habitantes). A atração pela cidade fez com que, atualmente, mais de metade da população do planeta – 7.783.000.000 de pessoas – seja urbana, e ser urbano significa um risco acrescido de ter e transmitir doenças infecciosas.

Por outro lado, uma outra realidade da nossa espécie é a das viagens: calcorreamos das mais diversas formas o planeta e não o fazemos como o fazíamos no passado. Até há 12.000 anos, altura em que nos começamos a sedentarizar, viajávamos pelos nossos próprios pés à velocidade de 5 Km/hora. Quando então transmitíamos doenças infecciosas, fazíamo-lo a essa velocidade. Depois, encontramos meios de viajar sempre mais depressa e para mais longe; sucessivamente passamos a utilizar os animais, o barco, o comboio, o automóvel e por fim o avião, o que nos permitiu deslocarmo-nos a uma velocidade 200 vezes superior do que aquela com que iniciamos a nossa viagem pelo planeta - quase a 1000 Km/hora.

E passou a ser a esta velocidade que transmitimos as doenças infecciosas. Por exemplo, um doente que venha da China infetado com o coronavírus, em fase assintomática mas já transmissor do vírus, que pare em Nova York em trânsito para Frankfurt, espalhará a infeção por três continentes em menos 24 horas; e nessa viagem, o doente pode ter contactado com centenas de outras pessoas. Os vírus agora viajam de avião, não precisam de visto nem de passaporte e dão a volta ao mundo em 24 horas. Nas nossas viagens de avião transportamos connosco muito mais coisas do que aquelas que vêm nas nossas bagagens. Neste caso alguém trouxe consigo, escondido no seu aparelho respiratório, um vírus mortal.

Ambas as realidades – a concentração populacional e a facilidade e rapidez com que nos deslocamos pelo planeta – são fortemente favorecedoras da propagação de doenças infecciosas, sobretudo as que têm o aparelho respiratório como porta de entrada e são transmitidas por via inalatória, como acontece com este SARS-CoV-2.

A Peste Negra viajou à boleia das Rotas da Seda, a varíola seguiu de barco para a América com os conquistadores espanhóis e a gripe espanhola viajou com os combatentes da primeira guerra mundial. A covid-19 espalhou-se pelo planeta através das novas rotas da globalização. Num mundo globalizado as epidemias são rapidamente globais e quanto mais globalizado for o mundo mais rapidamente globais elas serão.

Para além de termos que resolver o atual problema sanitário, temos que nos preparar para gerir uma próxima realidade similar a esta, coisa que não fizemos desta vez, apesar de esperada. Fomos um pouco displicentemente apanhados desprevenidos, apesar de várias organizações terem chamado a atenção para a sua inexorabilidade; por exemplo, nas conferências TED (Technology, Entertainment, Design), Bill Gates, em 2015, tinha-a previsto, tal como aconteceu em vários relatórios das Nações Unidas, Organização Mundial da Saúde, Banco Mundial, OCDE, Parlamento Europeu e outras organizações. Pergunta-se então: porque é que ninguém estava preparado? A resposta é óbvia: nenhum país estava interessado em assumir os importantíssimos e reiterados custos que a preparação para um evento desta natureza exige, até porque não se sabia quando ele iria acontecer e, atualmente, as políticas económicas acompanham os ciclos políticos – são de curto prazo. Resultado: uma fatura planetária pesadíssima em vidas e inquantificável sob o ponto de vista económico, de muitos, muitos zeros.

Chegou a altura de repensarmos o nosso modelo de desenvolvimento, não apenas na vertente ambiental, mas também económica, laboral, social e sanitária.

O futuro vai trazer-nos mais surtos pandémicos, com maior frequência e quiçá maior gravidade, até porque vírus bem mais perigosos andam por aí. É o caso do vírus Influenza H5N1 – o vírus da gripe aviária – que, apesar de já ter conseguido infetar humanos (com uma letalidade de 60%), felizmente para nós, ainda não aprendeu a transmitir-se de pessoa a pessoa. Este vírus é desde há 23 anos um sério candidato a transformar-se num perigoso vírus pandémico. Um entre vários.

Mas apesar de tudo isto a mensagem é de esperança. Temos que continuar o notável percurso que a Ciência e a Medicina têm feito no combate às doenças infecciosas. Nunca no passado aconteceram descobertas tão rapidamente como aquelas que estão a acontecer: descodificação do genoma viral, compreensão do seu processo de infeção celular, descoberta de testes diagnósticos e de tratamentos aparentemente eficazes (remdesivir, plasma de convalescentes e anticorpos específicos) e experimentação em humanos de novas vacinas, tudo isto em apenas quatro meses. Tais factos passam a ser marcos na História da Medicina.

Por isso, para além da insegurança, do medo, dos vários impactos e constrangimentos que estamos a viver, dos falecimentos e de uma economia destroçada, no fundo de tudo isto, fica uma enorme esperança. A espécie humana irá vencer mais este desafio. Terá é que sair desta crise um pouco mais sábia.

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