O triângulo da nova comédia política
O mundo da finança será um mundo à parte e não submetido às regras de transparência democrática que devem imperar em toda a sociedade?
O desconfinamento foi celebrado efusivamente pelos media, a classe política e muita da sociedade civil que já sufocavam com a monotemática noticiosa da covid-19. E até uma comemoração numa fábrica de automóveis serviu de pretexto para o primeiro-ministro e o Presidente da República trocarem galhardetes e criarem novos “factos políticos” (os tais que foram teorizados em tempos pelo comentador Marcelo).
O local não era propriamente o mais adequado para o chefe do Governo, numa pirueta retórica, lançar a recandidatura do Presidente, ou para este manifestar apoio ao primeiro-ministro na polémica com o ministro das Finanças sobre a concessão dos 850 milhões ao Novo Banco. Mas a descompressão ligada ao desconfinamento levou a melhor. Ou levaria, se os mesmos protagonistas – incluindo, claro, o ministro das Finanças – não se envolvessem mais tarde numa sucessão de cenas quase impossíveis de reconstituir com fidelidade, tal foi a confusão e o atropelamento de episódios, entre zangas, recriminações, pedidos de desculpa, correcções, esclarecimentos, hipocrisias, falsidades, etc. E tudo isto sem esquecer a reconciliação final entre o primeiro-ministro e o seu ministro supostamente rebelde em perfeito clima de “happy-end” hollywoodesco.
O primeiro-ministro, que se destacara pela postura firme de comandante-em-chefe durante a fase mais crítica da pandemia, terá tido saudades da velha política onde nada do que parece é (ou o seu contrário) e a comédia das aparências se converte tantas vezes em teatro do absurdo. E o Presidente não menos saudoso devia estar do seu gosto irresistível e descompressor das tricas políticas, apesar (ou por causa) da terrível gravidade dos tempos que atravessamos. Quanto à terceira personagem deste insólito triângulo das Bermudas, vimo-lo reivindicar o seu papel de estrela da companhia (continua a ser o ministro mais popular porque eventualmente mais “protector” aos olhos dos cidadãos assustados com esta e outras crises). Um papel que o chefe do Governo teria vindo a menorizar em favor dos ministros mais fiéis e do seu círculo mais próximo (como o titular da Economia, hiper-presente durante o ataque à pandemia e perante o eclipse prolongado do seu colega das Finanças).
Na confusão de pormenores que criaram as condições de uma polémica falsa e forçada, o ministro das Finanças insistiu na obrigação do pagamento ao Novo Banco – inscrito aliás no Orçamento do Estado –, o qual não dependia da auditoria (atrasada) da Deloitte. Mas, por outro lado, o primeiro-ministro, além de totalmente absorvido pelo combate à covid-19, não deixava de ter uma razão ética de fundo (partilhada com o chefe do Estado): a de que a transferência de somas tão avultadas para um banco deixado à rédea solta – como o demonstra um artigo imperdível de Cristina Ferreira no PÚBLICO de ontem – teria de ser submetida a uma avaliação rigorosa e imparcial. Afinal, o fulcro da questão é mesmo este: o mundo da finança será um mundo à parte e não submetido às regras de transparência democrática que devem imperar em toda a sociedade? Um mundo onde é possível que os administradores de um banco falido (ou com resultados que o tornam assim aos olhos do contribuinte) cuidem de amealhar os seus ricos prémios.
Toda a gente já se deu conta, apesar da derradeira confissão amorosa entre o primeiro-ministro e o ministro das Finanças – de novo a soar a falso, sem que eles pareçam importar-se muito com isso –, que Centeno pretende há muito mudar de vida, atingidas as suas metas mágicas como titular daquele cargo, e que as terríveis incógnitas da actual crise não se enquadram na sua personalidade de alto funcionário público e banqueiro, aspirando a voar alto lá fora – no FMI, por exemplo – mas, se não for possível, conformando-se a voar baixo cá dentro, no resguardo da casa materna do Banco de Portugal. Tudo isto para chegar aqui? É a vida.