Salvar a democracia da pandemia
A experiência única que estamos a viver é um imenso desafio à ordem democrática, na medida em que pode ser aproveitada para toda a sorte de abusos
“A pandemia não pode matar a democracia”, escrevia ontem São José de Almeida, a propósito dos rumores de adiamento de próximos actos eleitorais – mais concretamente, das presidenciais – que se têm vindo a insinuar nos últimos tempos. É um juízo avisado, que subscrevo, embora não deixe de recordar que a segunda volta das municipais em França teve de ser adiada devido aos constrangimentos do confinamento que poderiam afectar uma expressão genuína da vontade dos eleitores (como afectaram, de facto, a primeira volta, levando a maioria da classe política a rever a sua posição contra o adiamento).
Nada é a preto e branco. Obviamente, a tentação dos adiamentos pode constituir um vírus perigoso para o Estado de direito – e não é por acaso que se fala dessa eventualidade relativamente às próximas presidenciais americanas, perante a iminência de uma derrota de Trump (embora este seja, como se sabe, um céptico esquizofrénico face aos riscos reais da covid-19…). Já na Polónia, as presidenciais realizadas essencialmente por via postal foram postas em causa devido à sua democraticidade mais do que duvidosa, enquanto, na Hungria, Órban se aproveitava da crise sanitária para impor a sua ditadura de facto sobre o país. Resumindo: apesar do nevoeiro político introduzido pelo coronavírus, teremos de analisar caso a caso para que, como lembra São José Almeida, a pandemia não mate a democracia.
De facto, a experiência única que estamos a viver é um imenso desafio à ordem democrática, na medida em que pode ser aproveitada para toda a sorte de abusos – alguns deles ocultados até por aparentes boas intenções humanitárias. A capacidade de discernimento dos cidadãos é vivamente posta à prova, para distinguir aquilo que é feito a bem da comunidade daquilo que disso se aproveita para legitimar poderes cada vez mais opacos e tendencialmente anti-democráticos. Por outro lado, também não é por acaso que a presente conjuntura internacional é propícia às mais retrógradas e venenosas teorias da conspiração, promovidas por movimentos de extrema-direita, negando a evidência dos perigos da covid-19 e promovendo campanhas contra as vacinas. O caso Bolsonaro no Brasil, uma caricatura tropical do trumpismo americano, dá que pensar sobre as ameaças da atmosfera obscurantista que pesa sobre o mundo.
Entretanto, limitando-nos à actualidade portuguesa, é interessante verificar até que ponto a confusão criada em torno das presidenciais – depois da declaração de António Costa a favor da reeleição de Marcelo e com a hipotética candidatura de Ana Gomes ou a candidatura-surpresa de Miguel Albuquerque – tem servido de teste à crise de referências cada vez mais aguda em que mergulhou o mundo político, apesar (ou por causa, já que as coisas nunca são lineares) da quase unanimidade suscitada pela gestão da crise sanitária. Não por acaso, no momento em que o PS deixava escapar o mal-estar causado pelo apoio intempestivo de Costa a Marcelo (tentando esconder o choque com Centeno a propósito do Novo Banco), o que ocupava simultaneamente o centro do palco era a opacidade do funcionamento do Estado em questões altamente lesivas dos interesses dos contribuintes. Por outras palavras: tornava-se insustentável o secretismo do contrato que envolve o Estado (via Fundo de Resolução) e o principal accionista do Novo Banco, o fundo americano Lone Star, favorecendo operações financeiras obscuras e eventualmente chocantes, à margem de um efectivo escrutínio e controlo público.
O requerimento formal do Bloco de Esquerda ao Fundo de Resolução para que esse contrato seja revelado ultrapassa o âmbito deste caso exemplar e abrange toda uma zona sombria da intervenção do Estado (no campo financeiro e não só), sendo, por isso, de indiscutível interesse nacional, sejam quais forem as reservas ideológicas que suscitem o partido requerente. A democracia não pode ser opaca, com ou sem pandemia.