27 de Maio: reconciliação e perdão em Angola?
João Lourenço enfrenta grandes desafios. Entre eles conta-se o de ser capaz de levar até ao fim aquilo que foi apenas iniciado, fazendo prevalecer, mais tarde ou mais cedo, a Verdade, indispensável para a almejada Reconciliação, uma Reconciliação a sério. O 27 de maio não pode ser apagado da memória dos angolanos!
Há precisamente 43 anos, em 27 de maio de 1977, populares manifestavam-se defronte do palácio presidencial, em Luanda, reclamando medidas contra a corrupção já vigente e exigindo mudanças. A manifestação foi reprimida por tanques, tal como em Tiananmen, seguindo-se uma mortandade, que se prolongou até 1980.
Tratou-se do maior genocídio de que há memória na África independente, que ceifou a vida de cerca de 30.000 angolanos. O massacre foi superior ao do Ruanda, mas ficou na penumbra, por força da conjuntura internacional.
Para o historiador português José Milhazes, o então presidente Agostinho Neto instrumentalizou os acontecimentos em curso nesse dia: “O 27 de maio foi uma ‘inventona’ (revolução imaginária) criada por parte de Agostinho Neto e pela então parte da direção do MPLA, que aproveitou a manifestação de Nito Alves – que não tinha por objetivo a tomada do poder nem a realização de um golpe de Estado – para neutralizar facções muito importantes dentro do MPLA, que tinham divergências com ele.“
Agostinho Neto, ainda hoje venerado como “humanista” por certos setores, foi implacável: “Não vamos perder tempo com julgamentos.” Deu ordem direta para matar, foi o responsável máximo. Há relatos de famílias inteiras chacinadas (por exemplo, dos sete irmãos Kitumba apenas dois sobreviveram), houve presos enterrados vivos, pessoas lançadas de aviões para o mar ou empurradas para a fenda do Tundavala, fuzilamentos arbitrários, enterros em valas comuns, torturas semelhantes às da Gestapo. Dos espancamentos a todos os órgãos do corpo, com armas, martelos, barras de ferro, cavalos marinhos, ao nguelelo, passando pela “roleta russa”, pelos fuzilamentos simulados, tudo foi utilizado. O nguelelo consistia no seguinte: o prisioneiro ficava com os pés atados às mãos, pelas costas, por meio de cordas molhadas, ligadas aos testículos. O calor fazia esticar as cordas, e o mínimo movimento causava dores insuportáveis nos testículos. Como se não bastasse, colocava-se um torniquete ligado a dois paus, junto às têmporas. Apertava-se o torniquete, provocando, além das dores, redução de irrigação sanguínea ao cérebro.
Durante muitos anos, o 27 de maio era uma questão tabu, recusando-se o regime a reconhecer o genocídio. João Lourenço, porém, demarcou-se, também aqui, da orientação seguida e erigiu, como uma das suas bandeiras, a Reconciliação e o Perdão, anunciando a intenção de homenagear as vítimas de crimes políticos. Pela primeira vez, o regime reconheceu que houve em Angola “um autêntico cortejo de violação de direitos humanos”.
Foi criado um Plano de Reconciliação e Perdão, está em construção um monumento de homenagem às vítimas e publicita-se, com alarde, a emissão de certidões de óbito das vítimas. Mas será que está em curso em Angola um verdadeiro processo de Reconciliação e Perdão?
Na sequência da publicitação do Plano de Reconciliação e Perdão, escrevi, em 28 de outubro passado, uma carta a Francisco Queiroz, ministro da Justiça e dos Direitos Humanos de Angola, na qual referia:
“Reconciliação e perdão pressupõem a admissão de que foram cometidos crimes, a identificação dos seus responsáveis.
Reconciliação e perdão implicam a busca da verdade, por mais dolorosa que ela possa ser, sem receios de que os ainda idolatrados fiquem com a ignomínia da repressão mais sangrenta do continente africano”.
No mês seguinte, encontrei-me com Francisco Queiroz, em Lisboa. Interrogava-me se seriam sérios os propósitos do Governo angolano de promover a reconciliação e o perdão no que respeita ao delicado tema “vítimas de conflitos políticos”.
Em benefício do interlocutor, e do Governo que representa, estava o facto, inegável, de pela primeira vez ter sido assumido que o regime tinha cometido crimes, com violação dos direitos humanos. Até então, os governos de Agostinho Neto e de Eduardo dos Santos recusavam qualquer referência ao 27 de maio, não respondendo sequer aos pedidos de informação formulados pelos familiares das vítimas.
Recordo-me, em particular, das cartas que meus pais escreveram a Agostinho Neto, o “Pai da Nação”, cuja receção nem sequer era acusada. Em tais cartas, eram pedidas informações sobre o paradeiro dos meus irmãos Sita e Ademar, bem como autorização para visitas. O poeta e “humanista” esquecera-se, porém, dos tempos em que tinha ele próprio sido vítima da PIDE, a polícia política portuguesa, que não lhe negou o direito a advogado e o direito a ser visitado pela sua mulher Maria Eugénia.
Por isso, manifestei a Francisco Queiroz, que curiosamente fora meu aluno em Luanda, no ano de 1976, o apreço por esta atitude do novo Governo de Angola, liderado por João Lourenço.
Em desfavor do interlocutor, ou mais exatamente do Governo de Angola, estava o facto de a iniciativa de Reconciliação, anunciada pelos responsáveis, omitir a busca da verdade, a identificação dos responsáveis pelos crimes, o efetivo pedido de perdão, indispensável para que haja a concessão do perdão e a efetiva reconciliação.
De facto, para que haja perdão, temos de saber a quem se perdoa. Tem de se saber previamente quem incorreu em crimes e de que forma, quem teve a autoria material e moral. Só assim poderá haver reconciliação. Quem o diz é a própria União Africana, de que Angola é membro, e que aprovou um documento, denominado “Política de Justiça Transicional”, no qual refere que “os mecanismos da justiça tradicional africana podem assumir as seguintes caraterísticas:
- Reconhecimento da responsabilidade e o sofrimento das vítimas;
- Demonstração de arrependimento;
- Pedidos de perdão;
- Pagamento de reparação ou compensação;
- Reconciliação”.
O Plano de Reconciliação, anunciado pelo Governo de Angola e aprovado pela comissão entretanto criada, apenas contém o último ponto dos cinco transcritos: reconciliação. Omite, completamente, o reconhecimento da responsabilidade, que pressupõe a identificação dos responsáveis, a demonstração de arrependimento por estes, os pedidos de perdão às vítimas e seus familiares e compensações (que, aliás, não foram formuladas).
Francisco Queiroz, em resposta, disse-me que seria difícil fazer como na África do Sul, em que o processo de reconciliação envolveu o encontro entre os repressores e as vítimas, pois receava que em Angola houvesse depois vinganças e represálias contra os responsáveis que fossem identificados. Disse-lhe que tal não iria seguramente suceder. As vítimas não se podiam vingar, pois tinham sido assassinadas, e os familiares não tinham qualquer desejo de retaliação, sendo certo que não tinham sequer meios para o fazer, pois sabe-se que os responsáveis continuam na órbita do regime.
Os desenvolvimentos posteriores são conhecidos. O programa da dita “reconciliação”, aprovado com fanfarra, tem muito folclore, mas falta-lhe, sobretudo, seriedade. Falta-lhe, sobretudo, cumprir as regras definidas pela União Africana, atrás enunciadas.
João Lourenço enfrenta grandes desafios. Entre eles conta-se o de ser capaz de levar até ao fim aquilo que foi apenas iniciado, fazendo prevalecer, mais tarde ou mais cedo, a Verdade, indispensável para a almejada Reconciliação, uma Reconciliação a sério.
O 27 de maio não pode ser apagado da memória dos angolanos!
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico