O regresso do futebol
Quão deprimente e insípido não teria sido aquele golo do Éder (alguém que nunca vi, mas trato como amigo do peito) se tivesse sido marcado num Stade de France às moscas?
Há quem tenha perdido o emprego. Há quem tenha passado a ganhar ainda menos do que a miséria que já ganhava. Há quem tenha visto o seu negócio desabar irremediavelmente. Perante os problemas económicos e sociais que se adivinham, vir falar de futebol parece até um ultraje. Que seja. Esforçar-me-ei para que seja um ultraje bem escrito.
Lamento a falta de sensibilidade a roçar a sociopatia, mas o que me tem feito mais falta durante esta maldita pandemia é estar refastelado no sofá a assistir ao magnifico espectáculo composto por 22 cavalheiros dispostos num tapete verde a correrem desabridamente atrás do bem mais precioso do mundo durante 90 e poucos minutos. É verdade que os canais desportivos têm tentado manter alguma “normalidade” com a transmissão de jogos de épocas anteriores, mas a insistência nesse paliativo, louvável e aprazível nas primeiras semanas, já começa a assemelhar-se àqueles jantares em que o anfitrião continua a insistir nas entradas, quando a única coisa que interessa aos comensais é passar ao prato principal.
Mas agora que o prato principal está quase pronto a ser degustado depois de uma longa e angustiante espera, colocam-se inevitáveis problemas de gestão de expectativas, incontornáveis querelas comparativas entre aquilo a que nos habituámos e o que a realidade tem para nos oferecer.
Se o desejo de ver regressar o futebol pátrio é indesmentível, também o é que da experiência alemã o que fica são sensações e imagens devastadoras: estádios completamente vazios; silêncios lúgubres apenas interrompidos por gritos e obscenidades; golos festejados com a candura de um operista — o que, segundo as regras próprias do “futebolês”, deveria ser um crime punível com o desterro.
Por muito que os clubes, cada vez mais transformados em organizações secretas e opacas, insistam na estupidificação do adepto, quase sempre visto apenas como receptáculo de guerrilhas e conspirações, é ele que dá sentido ao futebol, que lhe dá cor, que lhe dá brilho, que lhe dá loucura.
Quão deprimente e insípido não teria sido aquele golo do Éder (alguém que nunca vi, mas trato como amigo do peito) se tivesse sido marcado num Stade de France às moscas? Teria o Liverpool conseguido aquela recuperação épica se não fosse apoiado, empurrado, alimentado pelo inconfundível público de Anfield? Teria a “Mão de Deus” sido possível se o génio de Maradona estivesse encarcerado no ambiente funerário de um estádio vazio? Como a experiência alemã já nos mostrou, sem as gargantas incansáveis dos adeptos até os jogos de maior cartaz assumem a mediocridade daquelas patéticas peladinhas paroquiais (das quais faço parte) entre craques anunciados e jogadores frustrados.
Os pragmáticos, seguidores dessa filosofia anedótica onde tudo se resume ao resultado e as zonas cinzentas não são toleradas, torcerão o nariz a estas dificuldades e dirão que são defeitos estéticos facilmente ultrapassáveis. Os românticos, idealistas e conservadores, ripostarão, dizendo que para ser assim não faz sentido o regresso do mais belo jogo alguma vez inventado. Num patamar intermédio, onde me incluo, estão os que dizem que o futebol deve voltar sim, mas cumprindo a mesma função de entretenimento dos programas da manhã e dos Big Brother desta vida, porque o futebol a sério é outra coisa e ainda vai demorar a voltar.