George Floyd e a supremacia branca
A morte de George Floyd veio revelar ao mundo um problema cultural mais amplo. E esta é uma conversa que não estamos prontos para ter nos países de brancos.
É o facto de os Estados Unidos terem nascido da violência, ou seja, da escravatura e da segregação e, portanto, de um pecado original que leva um polícia branco a matar um negro em plena luz do dia. Isso é evidente num país onde estereótipos foram habilmente construídos durante séculos para afirmar que o Negro deve ser controlado e dominado.
Por causa desse pecado, nasceu uma percepção tendenciosa do Negro, conscientemente construída pelos brancos. Portanto, o Negro é apenas um imaginário para eles. Os Estados Unidos foram pensados por e para brancos contra negros em bases fundamentalmente racistas.
O racismo na nação americana é institucionalizado e tornou-se o motor e a pedra angular da desigualdade. É desde o início que se construiu para os negros o país que eu chamo de “Estados Unidos da Angústia”, cuja vigilância foi entregue a indivíduos como Derek Chauvin, o assassino de George Floyd, o que nos faz pensar em um soldado do Ku Klux Klan disfarçado de polícia. E ele é apenas um dos rostos desse racismo estrutural. Lembremo-nos de que a missão histórica do polícia branco americano era vigiar os negros e garantir que a segregação corresse bem. Deve-se talvez perguntar se é razoável esperar que um país construído sobre tais bases possa dar seres não-racistas, na medida em que é a cultura e os hábitos que geram os seres!
A segregação ainda continua nos Estados Unidos apesar de todas as lutas dos negros desde a escravatura. O sistema de habitação é racista. O sistema de justiça é racista. O sistema financeiro é racista. O sistema de ensino é racista. O sistema de saúde é racista. O sistema político é racista. E neste preciso momento, a comunidade negra está a enfrentar dois vírus: racismo sistémico e covid-19. O último tem afectado e matado desproporcionalmente no seio desta comunidade, o que também é uma consequência do racismo.
A morte de George Floyd veio revelar ao mundo um problema cultural mais amplo. E esta é uma conversa que não estamos prontos para ter nos países de brancos. Optamos por não entender que o que faz um polícia branco matar um negro sem pestanejar é uma cultura mais difusa no mundo ocidental e que é muito sorrateira.
Especialmente, não queremos ver a sua estreita ligação com a nossa história comum e com os imaginários que criamos para o benefício de alguns e às custas de outros. Entretanto, em Portugal, França, Inglaterra e mesmo no Brasil ainda se encontra maneira de ficar indignado e condenar veementemente atitudes como a de Amy Cooper, a mulher branca que, há alguns dias no Central Park, em Nova Iorque, disse furiosamente a um homem negro que iria chamar a polícia para dizer “que um homem afro-americano a estava a ameaçar”.
A história desse negro, cuja vida quase foi posta nas mãos de uma polícia notoriamente racista, simplesmente porque ele havia pedido a uma mulher branca para cumprir a lei e manter o seu cão na coleira, mostra-nos claramente as relações que as sociedades brancas mantêm com pessoas não-brancas e como elas tomam a polícia como aliada natural.
Eu próprio, que nunca tive problemas com a polícia e que não sou violento, já fui ameaçado por pelo menos uma das minhas ex-namoradas brancas, nas situações mais banais de desentendimentos que têm todos os casais do mundo, ao querer chamar a polícia. E às vezes elas até entram neste jogo psicológico de uma maneira divertida, porque conhecem a relação histórica, bem documentada, que a polícia cultiva com pessoas como eu. Essas mulheres sabem que a política de números na polícia visa primeiro pessoas não brancas e pobres. Então sabem o que fazem quando transformam a sua brancura e fragilidade numa arma. Portanto, é um acto consciente. Mas é a negação que é o problema, porque mantém, intencionalmente ou não, o poder e o privilégio brancos.
O poder e o privilégio brancos em detrimento do Negro foram construídos da mesma maneira que o poder e o privilégio do homem branco sobre a mulher branca. A cultura cristã que inferiorizou a mulher pôs também a mulher branca num lugar subalterno. Em França, por exemplo, ela foi esquecida na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, na qual se afirmou com orgulho que o Homem era exclusivamente Branco. Durante esse período, os negros eram mantidos na escravatura. Portanto, os países ocidentais foram construídos sobre uma base machista e racista; não foram sensibilizados a viver em igualdade nem com as mulheres nem com os não-brancos, como mostra a literatura.
Para lembrar os Europeus do seu racismo cultural e defender os povos colonizados, Aimé Césaire escreveu o seguinte em Discurso sobre o colonialismo: “Sim, valeria a pena estudar, clinicamente, ao pormenor, os itinerários de Hitler e do hitlerismo e revelar ao burguês muito distinto, muito humanista, muito cristão do século XX que traz em si um Hitler que se ignora, que Hitler vive nele, que Hitler é o seu demónio, que se o vitupera é por falta de lógica, que, no fundo, o que não perdoa a Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco, a humilhação do homem branco e o ter aplicado à Europa processos colonialistas a que até aqui só os árabes da Argélia, os coolies da Índia e os negros de África estavam subordinados”.
E o que queria Hitler? Ele queria o seguinte, também citado por Césaire no mesmo livro: “Nós aspiramos, não à igualdade, mas sim à dominação. O país de raça estrangeira deverá voltar a ser um país de servos, de jornaleiros agrícolas ou de trabalhadores industriais. Não se trata de suprimir as desigualdades entre os homens, mas de as amplificar e as converter em lei”. Esse pensamento começou antes de Hitler e o encontramos em todos os discursos dos países colonialistas e nos escritos daqueles que a Europa considera os seus maiores pensadores (Voltaire, Rousseau, Pessoa, Lobato). E como o negro americano ainda é visto como estrangeiro no seu próprio país, esse pensamento permanece nos Estados Unidos.
Os assassinatos de negros são mais retumbantes lá simplesmente porque a cultura das armas é maior. A polícia francesa também é repressiva, com os mesmos métodos. A polícia inglesa também. A polícia portuguesa também. A polícia brasileira também. Portanto, os problemas são os mesmos em todos esses países quando são confrontados com não-brancos, aqueles que eles chamam de “outros”. E tudo isso é justificado por essa história comum que eles não querem entender, nem admitir, a fim de tentar reparar o que foi quebrado. Nem querem assumir alguma responsabilidade por este passado trágico. Só que, como James Baldwin escreveu, “não é permitido que os autores da devastação também sejam inocentes. É a inocência que constitui o crime”.
É o desafio do nosso tempo. Devemos enfrentá-lo juntos, brancos e não-brancos, dignamente, da mesma maneira que enfrentamos o anti-semitismo, o sexismo, a homofobia ou da mesma maneira que fomos dizer “Je suis Charlie”. Os brancos têm medo, há muito em jogo para eles. Isso significaria que eles têm que aceitar perder e partilhar o seu poder e os seus privilégios. E isso é ainda mais difícil, porque eles são, na história recente, a comunidade humana que tem menos experiência com a vida na igualdade com os “outros”. Mas a onda da mudança multirracial já está em marcha e devemos segui-la.
O linchamento público de George Floyd certamente foi um catalisador. Mas a isso acrescenta-se o fracasso do capitalismo em garantir necessidades básicas (comida, assistência médica, educação de qualidade, empregos com salários decentes). Os manifestantes sentem-se traídos, aspiram à paz e à irmandade e entenderam que os seus Estados e grupos de interesse que os dirigem desejam o contrário. Então estão a denunciar a hipocrisia, o sofrimento e a miséria em que foram postos. Este movimento só está a pedir verdade e justiça, está a pedir que tenhamos novas atitudes, outra compreensão e vontade. Em suma, pede-nos coragem para mudar este mundo.