Mediocridade e falência
Curioso foi ver os liberalistas, com tanta aversão ao sector social e ao Estado, afinal virem reclamar um Estado mais interveniente e mãos largas nesta crise.
Não deixa de ser curioso ver os autoproclamados liberais (não são neo, são os liberalistas de sempre) virem agora reclamar da mediocridade da situação política e económica, quando o que esta crise da pandemia veio tornar mais evidente foi precisamente a falência, mais uma vez, do liberalismo, estando o mundo inteiro a pagar as consequências da globalização neoliberal.
É que liberais somos todos nós, os que defendemos a democracia chamada liberal, de liberdades e garantias, que umas vezes é por alguns apelidada de “burguesa”, pois os que se arrogam de liberais são libertinistas ou libertinos.
A espantosa dependência com que os Governos e os Estados se defrontaram nesta crise face aos poderes dumas quantas cadeias de produção mundiais e dos grandes grupos económico-financeiros, com particular ênfase para as indústrias química e farmacêutica, já tinha sido de algum modo perspectivada por alguns economistas - mas não por todos.
Joseph Stiglitz, Prémio Nobel em 2001, já em 2019 escreveu: “O neoliberalismo prejudica a democracia há 40 anos”; “Os efeitos da liberalização dos capitais foram particularmente odiosos”; “Após 40 anos os números estão aí: o crescimento diminuiu e os frutos desse crescimento foram na sua esmagadora maioria para um punhado que está no topo.”
A fantasia de Fukuyama, que nos finais da década de 70 do século passado, proclamava o Fim da História - com a queda do comunismo o mundo inteiro ficaria entregue aos braços concupiscentes dos mercados, traduzindo aquilo que os liberalistas proclamam de que não há direita nem esquerda, há apenas o mercado - falhou redondamente; numa entrevista dada ao El País em 2019 o mesmo Fukuyama arrepiou caminho ao que escrevera naquela sua fase eufórica e ficou como o famoso efémero guru que muito influenciou Margaret Thatcher e Ronald Reagan.
Dani Rodrik, conceituado Professor de Harvard, denunciou a perda de credibilidade de muitos economistas por não saberem prever as crises do sistema que ocorreram e ocorrem ao longo dos dois últimos séculos.
Curioso foi também ver os liberalistas, com tanta aversão ao sector social e ao Estado, afinal virem reclamar um Estado mais interveniente e mãos largas nesta crise. Como já acontecera na Grande Depressão, foi o Presidente Roosevelt, quando atirou com a maciça intervenção do Estado na economia e no apoio social, que salvou os EUA e a própria Europa. E Keynes, com a sua teoria e práticas económicas, trouxe ao mundo, em especial à Europa, as melhores décadas de paz e prosperidade, com a criação do Estado Social, arrumando por algum tempo o liberalismo – mas já ouvimos até cá em Portugal, e não há muitos dias, a dizer “mais keynesianismo não!”...
A melhor defesa é o ataque e os autoproclamados liberais, cá como no resto do mundo, sentem o chão a fugir debaixo dos pés, pois cada vez mais maiores camadas das populações mais informadas parecem dispostas a não aceitar os desmandos dos mercados, esta dependência consumista e especulativa neoliberal, que constitui grande ameaça para vida no planeta, para a diminuição da biodiversidade e para a existência de condições sociais dignas e não meramente assistencialistas.
Devemos ter esperança e confiança em que o deus “mercado” esteja a perder os seus crentes, e que todos, como cidadãos, sejamos capazes de contribuir para uma Humanidade mais livre, escolhendo governantes à altura do momento – para que aquilo a que estamos agora penosamente a assistir seja o dramático começo dum tempo melhor.
As ideologias democráticas não estão mortas, precisamos delas para revitalizar as sociedades e a democracia de forma activa e atenta, porque tal como a hidra quando lhe cortavam uma cabeça renovava outra, o liberalismo desde o século XIX que faz o mesmo com o seu cortejo de desigualdades, injustiças e destruição do planeta. A mediocridade e a falência do modelo de globalização neoliberal dão-nos a esperança de que virá um mundo mais são.
A cidadania activa é a melhor arma para construir uma sociedade melhor, pois os melhores gestores da polis são os seus habitantes, os verdadeiros políticos.