Professores universitários – a (des)construção de uma carreira
A Universidade precisa de um grande debate sobre o que deve ser entendido como valores científico e pedagógico, que são afinal as duas traves mestras da profissão.
Como mudou a carreira universitária, em construção e em desconstrução, do meu tempo até agora! Li o Estatuto da Carreira Docente Universitária (ECDU), tentando perceber porque é que alguns dos meus jovens colegas aspiram a aposentarem-se depressa. Apesar de encontrar um ECDU escrito de forma ambígua, com pontos de duvidosa redacção e com aspectos discutíveis, concluí que, mais do que as leis, só a experiência poderá justificar o desânimo. Esse Estatuto não explica tudo e deve com certeza ser conjugado com outros documentos (o Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior, RJIES, os Estatutos das diversas universidades e as suas directivas específicas), mas sem dúvida com toda uma evolução social, burocrática e dos saberes dos últimos anos. Muito me escapa e este exercício é apenas… um exercício, que deveria ser aclarado pelos actuais docentes em textos de análise crítica que escasseiam, a não ser provavelmente nas “redes sociais”, que não frequento.
Começávamos a carreira como “assistentes”, inicialmente como “segundos assistentes” (só após o doutoramento passávamos a “primeiros assistentes”). Numa nova versão legislativa, como “assistentes estagiários”, ascendendo a “assistentes” depois de uma prova de capacidade pedagógica e de mérito científico, apenas podendo ter acesso à categoria de “professores auxiliares” depois de ultrapassada a “prova de vida”, que constituía o doutoramento.
Lutámos antes do 25 de Abril, no contexto de um “pré-sindicato de professores”, contra o que considerávamos os defeitos dessa carreira: por exemplo, a instabilidade profissional, o acesso a assistente por convite (que se podia basear em factores não científicos ou pedagógicos), o domínio do “professor catedrático”, título que chegámos a propor que fosse transformado na expressão “menos agressiva” de “professor titular” e a subordinação da carreira a factores policiais. Todavia, nunca pusemos em causa a existência dessa categoria inicial, pois entendíamos que a fase de assistente nos levava a aprender a ensinar e a investigar. E hoje muitos recordamos — apesar de os termos criticado quando se manifestavam como “chefes soberanos” — os mestres, os tais catedráticos, que nos ensinavam, e as “escolas” que criaram. Entretanto, também discutimos a formação de uma carreira de investigador, tema que abordei em outro artigo (“Ensino e Investigação na Universidade”, PÚBLICO, 22 Setembro 2017).
A categoria de “assistente”, discutivelmente, desapareceu. Inicia-se a carreira como “professor auxiliar”, em concursos para que é necessário, no mínimo, o doutoramento. Este grau, no meu tempo, não era apenas adquirido no âmbito da carreira docente, mas era-o dominantemente. Hoje — num currículo escolar em que a licenciatura só pode ser comparada a um bacharelato de antigamente e um mestrado a uma licenciatura — o doutoramento tornou-se algo tão comum que enche todas as semanas páginas de jornais provincianos neste país doutoral, a ponto de pormos em dúvida se essa prova tem mesmo, em alguns casos, valor científico ou se é, na política deste país e das universidades, mais uma prova para “cumprir estatísticas”. Diga-se, porém, que os novos doutores, por vezes, ficam desempregados ou subempregados, “indo à sua própria custa — parafraseando Ramalho Ortigão na deliciosa caricatura da Universidade de Coimbra, A Mamã dos Bacharéis, do Álbum das Glórias de Bordalo Pinheiro — aprender outro ofício menos estéril que o de doutorar”.
Depois do doutoramento passávamos, pois, à categoria de “professor auxiliar” em regime experimental de cinco anos, que seria ultrapassado por um atestado de bom profissionalismo pedagógico e científico. Só a seguir poderíamos concorrer à abertura de vagas para “professor associado” e, só após alcançarmos esse grau, fazíamos a prova máxima da “agregação” (hoje feita mesmo como professores auxiliares) que nos podia abrir as portas à categoria de “professor catedrático”.
Era uma carreira difícil, mas que percorríamos com algum gosto, desde que não houvesse qualquer impedimento interno ou externo, sobretudo de ordem política, o que já (na maioria dos casos) não sucedeu no meu tempo, pois, apesar de ter iniciado a minha vida universitária em 1970, doutorei-me em 1978, já depois do 25 de Abril.
Não é possível reduzir de forma compreensível o que se passa agora a um artigo de jornal. Mas posso perceber por que muitos colegas se sentem desiludidos: a falta de abertura de concursos durante largo tempo, o que provocou o envelhecimento dos docentes; o desrespeito pelo que se considerava fundamental para um ensino correcto e uma investigação rigorosa (excesso de aulas, falta de tempo e de apoio material para a investigação, não consideração pelo trabalho desenvolvido na escola em múltiplas actividades burocráticas sob a capa da modernização, prioridade concedida a projectos ditos internacionais, com a valorização de textos em inglês como se isso fosse índice de qualidade…); a competição feroz fora das boas regras universitárias, que supõem os conceitos de comunidade e de sociabilidade; a falta de consideração pelas condições do trabalho de cada um na sua escola; a falta de capacidade de intervenção na gestão das escolas; a ideia de transformação da Universidade numa Universidade-Empresa, contra a essência da sua concepção originária… Tudo isto assim dito pode não ter significado para quem não vive a profissão, mas tem para quem a conhece intimamente.
Eis dois exemplos: Numa análise para avaliar pedagógica e cientificamente os professores auxiliares de um departamento, após cinco anos de experiência nessa categoria e depois de vários anos como assistente, um departamento da minha Universidade — como qualquer empresa que despede os seus funcionários após entender que já não servem para dar lucro —, criou um regulamento de avaliação que possibilitou que se desse muito mais importância ao currículo científico (sobretudo internacional), esquecendo que um professor universitário deve, acima de tudo, ser… um professor, e não fundamentalmente um investigador, qualidade que, todavia, tem necessariamente de ir manifestando ao longo da sua vida. Os excluídos (que teriam, numa estranha lógica regulamentar, de ter no mínimo a classificação de Bom e não a obtiveram), passaram à situação de desempregados, recorrendo aos tribunais. Ganharam numa primeira instância, mas, perante o recurso da Universidade, o caso subiu à instância seguinte, onde jaz há vários anos (a lentidão dos tribunais, sobretudo os tribunais administrativos, é demolidora), mantendo suspensa a vida desses docentes ou ex-docentes.
Num concurso para “professor associado” foi escolhido um doutorado com uma escassa experiência docente, que jamais passou por uma carreira, nunca tendo sido “professor auxiliar” (e muito menos “assistente”), mas com um currículo alegadamente “mais internacional”, em detrimento de um docente com muitos anos de profissão e dedicado às múltiplas tarefas que hoje exige uma escola, e que passou por todas as provas que supõe a sua carreira. Por isso se fala agora de concursos internos, apenas abertos a quem se encontra na carreira docente!
Mas serão estes exemplos esclarecedores? A Universidade precisa de um grande debate sobre o que deve ser entendido como valores científico e pedagógico, que são afinal as duas traves mestras da profissão, cuja legislação e prática, sempre em construção e em desconstrução, é feita nas secretarias de Estado e nas universidades sem que sejam ouvidos os professores que dela tiveram uma longa e difícil experiência e mesmo alguns que serviram em comissões de avaliação, que parece não terem sido mais do que simples fachada “para inglês ver”. A Universidade supõe a Ciência, o Ensino e uma Cultura de Solidariedade, sem o que não é… Universidade. Mesmo que os rankings, com as suas discutíveis regras e obedecendo a determinados interesses e poderes, as coloquem em posições cimeiras, poderão alguma vez ser colocadas entre as universidades-modelo? E o que é a Universidade-modelo? Ou, melhor, o que é a Universidade, ou o que deve ser, neste século XXI, e o que deve ser um “professor universitário”, terminologia vaga e ambígua que hoje se usa por aí, como — nesta sociedade dita democrática mas de pseudo-elites — se utiliza abusivamente o tratamento de “dr.” ou mesmo de “Professor Doutor” (por extenso ou não)? Lindley Cintra teria hoje de refazer muito um seu ensaio inesquecível sobre as formas de tratamento em Portugal!
Post Scriptum: Este texto foi escrito em Janeiro-Fevereiro deste ano de 2020. Porém, a covid-19 tirou, praticamente, durante vários meses, a oportunidade a qualquer artigo que não dissesse respeito à pandemia. Só se falava das aulas dadas por via dos programas digitais. Assim, ficou na gaveta todo este tempo, até que vi no PÚBLICO uma notícia, com chamada na primeira página, em que se afirmava que não havia fiscalização em relação a professores que faziam serviço em outras universidades ou em outras funções privadas, que não poderiam, por lei, encontrar-se na situação de “dedicação exclusiva”. Não discuto esta questão aqui e agora, mas o certo é que, independentemente dessa situação concreta, há, sem dúvida, no mundo universitário, “faculdades ricas” e “faculdades pobres”. Nestas facilmente se detectam situações irregulares, enquanto nas primeiras (e em certos casos) nunca se investigam essas situações. Já Kant falava da diferença de faculdades, num texto famoso intitulado justamente O conflito de faculdades (Der Streit der Fakultäten, 1798). Foi esse artigo do jornal que fez com que tirasse o texto do meu computador, onde jazia quase em esquecimento. Devo acrescentar, um pouco a propósito, que, como o PÚBLICO correctamente me tem apresentado, sou “professor catedrático aposentado da Universidade de Coimbra”. Mas, de acordo com o cartão identificador que a UC nos entregou recentemente, com a colaboração de uma empresa privada, sou “Membro UC vitalício”. Assim vai o tratamento dos professores universitários que deram a sua vida profissional à escola, ao ensino e à investigação, em tempo inteiro e dedicação exclusiva, e continuam, felizmente, a dá-la, depois de pedirem a aposentação, em tempo parcial, mas com o mesmo amor à instituição…!