Centeno

Não, esta coluna não é sobre Mário Centeno. É sobre a cultura política que criou este tipo de situação, à luz da qual a independência das instituições vale pouco ou nada.

Não, esta coluna não é sobre Mário Centeno. O que há, afinal, para dizer sobre alguém que acha que a sua ida para o Banco de Portugal não vai afetar a independência desta instituição? Não, esta coluna não é sobre Centeno.

Esta coluna é sobre a cultura política que criou este tipo de situação.

Uma cultura política à luz da qual a independência das instituições vale pouco ou nada. À luz desta cultura, a independência das instituições, ao invés de ser um garante de mérito contra redes de interesses particulares, transformou-se num verbo de encher para legitimar escolhas cujo objetivo é condicionar a vida das instituições e do país.

Uma cultura clientelar, quando não nepotista. Uma cultura em que o termo “mérito” é usado com escárnio: não um adjetivo que qualifica de forma positiva o substantivo que se segue, mas que denota um mito em que só os ingénuos acreditam.

Uma cultura tão enraizada em Portugal que escrever sobre ela se arrisca a ser um exercício espúrio. No fundo, escrever sobre esta cultura de amigos e clientelas é escrever sobre algo que todos nós conhecemos, mas que poucos estão dispostos a criticar abertamente e a retirar as respetivas consequências.

Há boas razões para isto.

Desde logo, porque esta cultura é parte de quem somos como país e sociedade. Entre nós, esta cultura é a regra, não a exceção. Excecionais são as instituições e formas de fazer e pensar em que os amigos, clientes e aliados não são favorecidos por serem amigos, clientes ou aliados. De tão enraizada está que muitos de nós acabamos por pensar que não há alternativa. Que sempre foi assim, e que é assim que se atua em todo o lado. E que, apesar de tudo, não é um problema assim tão grande. Que, bem medidas as coisas, não é assim tão grave manipular resultados. Que dar uma ajudinha a um amigo ou conhecido ao arrepio das regras é, na verdade, melhor do que seguir procedimentos cujos resultados não controlamos. Que, no fundo, no fundo, as exceções existem é para serem usadas – ainda que, de tão usadas, acabem por se tornar a regra.

Em abono da verdade, nem tudo é mau nesta cultura. Desde logo, favorecer o próximo traz conforto psicológico. Quem ajuda sente-se generoso para com quem ajuda. Quando institucionalizada, esta cultura cria laços de solidariedade fortes e duradouros. Em sociedades crescentemente atomizadas, ajuda a reforçar o sentimento de pertença a um grupo ou comunidade. Por isso mesmo, encontramos exemplos dela por esse mundo fora desde tempos imemoriais. Do Japão à Coreia, da América Latina a África ou Europa, não há região do mundo em que este tipo de cultura política não tenha expressão, por vezes facilitando a participação cívica.

Mas isto não nos deve fazer perder de vista o que se perde quando uma sociedade favorece sistematicamente uns em detrimento de outros, ao arrepio de regras e procedimentos gerais e abstratos.

Em primeiro lugar, esta cultura divide a sociedade ao meio. À primeira vista, isto é um paradoxo. Como pode uma cultura que reforça os laços sociais dividir a sociedade? A resposta é simples. Depende de que laços estamos a falar. Neste caso, são laços entre membros do mesmo grupo. O resultado é conhecido. De um lado, está quem nos ajudou. Do lado de fora, ficam todos os demais. Esta ideia ajudou muitos cientistas sociais nas últimas décadas a explicar as diferenças políticas, económicas e sociais entre diferentes regiões de um mesmo país, por exemplo. Ou entre diferentes grupos dentro de uma mesma sociedade. Em todos estes casos, o resultado é o mesmo: apesar de sermos todos iguais, há uns mais iguais que outros. E isto corrói o tecido social.

Em segundo lugar, impede a atração de talento. Desincentiva a promoção do mérito e do esforço. Isto significa que pode constituir um entrave significativo ao desenvolvimento económico e social. Um país que não é capaz de escolher os melhores arrisca-se a ficar para trás. Torna as empresas menos competitivas e inovadoras. Tende a fechar as universidades sobre si mesmas, incapazes de atrair os melhores professores e cientistas. Pode condicionar a direção dos nossos museus. A solução não passa por expressões públicas de desagrado quando a escolha não recai sobre um dos nossos; a solução é ganhar consciência de que para ser capaz de atrair e reter os melhores, alguns destes não serão “dos nossos” – mas que, ainda assim, nós temos muito a ganhar em passar a contar com eles.

Em terceiro lugar, mina a independência de instituições. Isto claro, se por instituições queremos dizer organizações maiores do que a soma de interesses particulares. À luz desta definição, em Portugal quase não há instituições. Da política à justiça, da ciência à saúde, o que impera são, muitas das vezes, feudos pessoais ou grupais. Feudos em que é difícil falar sem pensar duas vezes porque ninguém quer correr o risco de parecer ingrato. Claro que há exceções. Instituições em que quem lá está não confunde a ideia de “serviço” com servir-se da instituição. Em que quem lá está cuida de algo que sabe não ser seu, mas sim algo que vai perdurar no tempo muito para além de se ter ido embora; ciente, portanto, de que outros virão para continuar a trabalhar em prol de algo maior do que uns e outros. E que este algo maior é a instituição, e que esta não se confunde com nenhum dos indivíduos, ou grupos de indivíduos, que por lá passou.

No fundo, torna a sociedade menos plural. Torna-nos sujeitos menos livres, mais co-dependentes de favores e tratamentos de exceção. Dizer-se o que se pensa torna-se mais difícil. Agir contra os interesses de quem nos ajudou torna-se anátema. Ser-se independente, verdadeiramente independente, torna-se quase impossível. É como diz Jorge Palma quando canta:

Não se pode estar direito
Quando se tem a espinha torta
Ai, Portugal, Portugal
De que é que tu estás à espera?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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