Metamorfose
Há um admirável mundo novo que se vai desvendando no confronto com as causas e os efeitos da pandemia.
À medida que a epidemia se expandia da Ásia para ocidente e se converteu numa pandemia, que os espaços sociais foram sendo fechados, as pessoas confinadas a casa e as cidades ficaram desertas, teceu-se a certeza de que uma nova ordem emergiria. O regresso ao passado não parecia possível após o seu tão abrupto e concludente encerramento. Académicos e comentadores congeminavam visões para o ‘novo normal’. Porém, quando se iniciou o desconfinamento, as pessoas precipitaram-se para as suas rotinas habituais, como que num esforço por apagar o tempo diferente passado, e restaurando o ‘velho normal’. Não basta o uso de máscara, o gel desinfectante a cada porta ou as filas do distanciamento social para instaurar uma nova ordem.
E, todavia, há um novo mundo a germinar. Não, porém, no palco do espaço público, mas nos bastidores; não no rompimento com o passado, mas no seu prolongamento, numa aceleração de processos que se vinham a desenvolver e agora se precipitam estimulados por necessidades prementes colectivas. É assim sobretudo a nível científico-tecnológico, para além das evidentes reconfigurações políticas em curso e da urgência de reinvenção de modelos económicos e de trabalho.
Um dos exemplos mais paradigmáticos será o da Inteligência Artificial que, há muito em forte progresso, faz hoje convergir linhas de investigação no confronto com as causas e os efeitos da pandemia. E neste limiar é um admirável mundo novo que se vai desvendando.
A IA está a revolucionar vários domínios implicados no controle da pandemia, começando pelo da investigação científica em que intervém na identificação e compreensão do vírus, como seja o acelerar da sequenciação do genoma; na apresentação de meios de acção, como uma vacina e novos ou antigos fármacos e tratamentos, encurtando o tempo previsto, por exemplo, através de deep learning para prever a estrutura de proteínas associadas; na previsão da sua evolução e da localização de surtos infeciosos, e até na organização do acesso criterioso à proliferação de publicações científicas, particularmente procedendo à análise de todas as publicações sobre a matéria. Neste âmbito, os sistemas de IA já haviam detectado o surto de um novo tipo de pneumonia, na China, antes de este ter sido identificado.
No plano dos cuidados de saúde, a IA pode intervir na detecção, diagnóstico, resposta, recuperação e prevenção da covid-19. Evidencia, por exemplo, a detecção e diagnóstico precoces e de maior rigor quando aplicada a imagens e dados de sintomas, através de algoritmos que reconhecem padrões e anomalias; pode desenvolver uma resposta personalizada à pandemia, a par de uma monitorização fina da recuperação; assiste na prevenção ou desaceleramento da infecção, por meio da supervisão de cadeias de transmissão do vírus que identifica. Algumas instituições dispõem painéis interactivos que rastreiam a propagação do vírus por meio de notícias ao vivo e dados em tempo real sobre casos confirmados de coronavírus, recuperações e mortes e as tecnologias de IA mostram capacidade para inferir dados epidemiológicos mais rapidamente do que os relatórios tradicionais de dados em saúde.
A IA é também já conhecida como a tecnologia do desconfinamento. Câmaras de inteligência artificial vigiam a população em vários países, monitorizam pacientes covid e rastreiam possíveis contágios, contribuindo também para garantir o distanciamento social e facilitando a interacção social, por exemplo, através da gestão dos semáforos nas praias e jardins, das ementas dos restaurantes e snacks em código. Nestes processos pode utilizar dados de geolocalização, registos de cartões de crédito ou de telemóveis. Em Portugal anuncia-se acriticamente uma app de rastreio para este mês.
Este mundo novo, hoje em plena efervescência, mantém-se algo invisível ou, pelo menos, bastante reservado. A nova ordem chegará, mas instalar-se-á discreta e não revolucionariamente como muitos vaticinavam, qual metamorfose a coberto do casulo. E, não obstante, como toda a metamorfose, operará uma mudança profunda nas nossas vidas como na das sociedades humanas. E na catadupa de transformações e caleidoscópio de aparências, na aurora deste novo mundo, importa preservar o que aqui nos trouxe, a identidade do humano, um intangível constituído por valores que nos deverão imunizar contra o ofuscamento da novidade gratuita e aconselhar na coabitação do ‘normal’ que prezamos com o ‘novo’ que se anuncia.