A liberdade de crítica
Somos férreos opositores da censura e pautámos assim as nossas biografias intelectuais. Daí a infâmia insultuosa da acusação.
No passado dia 11 de julho, 67 subscritores de um artigo de opinião em diário de referência nacional, maioritariamente académicos, exerceram a sua liberdade de expressão para criticar argumentadamente uma intervenção televisiva que, no seu entender, descaracterizava e branqueava o racismo do Chega e o ilibava de ser um partido de extrema-direita, fazendo isto sem garantias de análise suficientes e usando a disciplina da História para uma actuação sobre o presente. Desde essa publicação, estes subscritores, de que fazemos parte, foram sujeitados às gravíssimas acusações de perseguirem e censurarem um colega. E de serem inimigos da liberdade. Com a clareza toda que as palavras permitem no espaço público, e até em defesa do respeito por ele, repudiamos a acusação e devolvemo-la. Com argumentos e não a desonestidade intelectual e a miséria cívica da falsificação.
Em primeiro lugar, repudiamos a acusação de censura em toda a sua extensão. Em parte nenhuma do texto que subscrevemos foi reclamada, pedida, sugerida sequer, qualquer limitação da difusão das opiniões que criticámos. E em parte nenhuma procurámos condicionar as investigações sobre o partido Chega. Para não desrespeitar os seus leitores, quem nos acusa do contrário tem de o demonstrar. Tarefa difícil, porque não o dissemos. E se não o dissemos não foi por cautela, mas porque dessa forma estaríamos a atentar contra as nossas próprias convicções. Somos férreos opositores da censura e pautámos assim as nossas biografias intelectuais. Daí a infâmia insultuosa da acusação. Aliás, a crítica que trouxemos ao espaço público tanto não visou calar que, pelo contrário, amplificou o ponto de vista que critica. E é assim que deve ser entre quem acredita nas virtudes do espaço público. Quem nos acusa de “cancel culture” talvez até saiba melhor do que nós como em democracia e liberdade se cancela: ignorando, não reconhecendo, não convidando, não contratando, não publicando, silenciando. O cancelamento faz-se pela calada e não na discussão aberta em espaço público. Não silenciamos, nunca, mas criticamos sem dúvida muitas vezes. É o que se espera do desempenho intelectual.
No dia em que académicos não pudessem expor-se ao espaço público para discutir o que outro académico trouxe ao espaço público, no dia em que a universidade se fechasse dessa forma sobre si mesma, pois bem, nesse dia a universidade deixaria de ser um lugar de liberdade. E depressa também deixaria de ser um lugar de verdade.
Em segundo lugar, devolvemos a acusação de censura, numa muito significativa extensão. Defender a liberdade de expressão é fundamental para a defesa do espaço público em Portugal, para o pensamento livre na nossa sociedade, nos nossos jornais, nas nossas universidades, nas nossas escolas, nos nossos cafés públicos. Mas defender a liberdade de expressão atacando, condicionando, ameaçando a liberdade de criticar é um embuste. Não há liberdade de expressão sem liberdade de criticar. Quando erigimos a primeira como valor absoluto do espaço público é fundamentalmente esta que estamos a defender. Porque a liberdade de criticar é uma liberdade difícil, que visa o que outro ou outros exprimiram, para criticar, desejavelmente de forma leal e argumentada, aquilo que exprimiram, dignificando todas as partes enquanto interlocutores racionais. Liberdade de expressão sem liberdade de criticar a expressão dos outros não é liberdade de expressão. É uma sua caricatura perigosa, pois numa sociedade onde a crítica é censurada, apenas sobra como critério de razão a reverência e o seu “duplo": o desprezo.
Há quem ache que criticar é monitorizar o pensamento dos outros, há quem ache que o que cada um pensa é só um assunto seu e que não pode ser interpelado. Mas isso não é defender a liberdade de expressão, é sim matar o seu propósito, o seu valor e acabar com a sua realidade. Por que importa a liberdade de expressão se não para dizer aquilo que incomoda sem por isso ser calado? E para que serve o espaço público se não for o lugar composto por jornais, televisões, redes sociais, online, onde se esgrime a divergência, com lealdade argumentativa e respeito pela verdade?
A “liberdade de expressão” sem direito à crítica no espaço público é uma vitimização tão indisponível à discussão como disposta a mandar calar, quando não mesmo a entrar por outras penalizações. É uma traição à liberdade de expressão e um condicionamento do espaço público que o fecha à divergência ou, na melhor das hipóteses, a codifica nas divergências previstas e reconhecidas, como ir jogar à bisca lambida nas colunas de jornais e outros cantos da opinião, mais ou menos controlados pelas mesmas instâncias. É extraordinário como tantos paladinos da liberdade de expressão agenciam esta atitude, sem exprimir o menor espírito crítico. Não, este espaço público q.b. e liberdade de crítica q.b. não estão ao serviço da liberdade de expressão.
Paradoxalmente, censura-se a crítica mas pouco ou nada se diz do discurso de ódio. Talvez porque não sejam feitas as distinções necessárias, bom trabalho académico. A liberdade de criticar até pode ofender, por exemplo sendo sarcástica, mas sem falhar nunca a igual dignidade de todos os que são parte da discussão e do espaço público. O discurso de ódio está nas antípodas da crítica porque rejeita esse reconhecimento da igual dignidade. E por isso está também nas antípodas da liberdade de expressão. É um desprezo por ela.
Quem nos lê facilmente perceberá que nada nos move além da preocupação com a crescente intolerância, segregação e a sua negação. A tentativa de nos calar chamando-nos censores é intimidatória, mas não é assim que funciona: critiquem que nós respondemos.