O faroeste financeiro português
As “pechinchas” oferecidas por um banco falido português aos especuladores imobiliários americanos reflectem até que ponto chegou o nosso sistema financeiro.
Ricardo Salgado e alguns dos seus colaboradores mais próximos do BES, além de António Mexia, Manso Neto e outras personagens destacadas da EDP, foram finalmente acusados quase ao mesmo tempo pela prática de crimes de variada natureza e lesivos dos interesses do Estado. A evidência dos indícios criminais não suscitou dúvidas. Pelo contrário, o que terá causado surpresa foi o carácter clamoroso dessas evidências e como foi possível ter-se estabelecido um tão vasto clima de impunidade que conduziu figuras com um perfil supostamente respeitável e acima de qualquer suspeita aparecerem envolvidas em redes grosseiras de criminalidade e corrupção.
Que um príncipe da finança como Ricardo Salgado seja acusado – e aparentemente com cabal fundamento – de patrocinar operações e expedientes típicos da criminalidade vulgar constitui a expressão extrema da degradação de costumes num universo que se pretendia protegido pela sua aura aristocrática. No fundo, essa aura não resistiu às ameaças letais à sua sobrevivência, recorrendo por isso a uma estratégia do mais rudimentar “salve-se quem puder” – mesmo que isso lhe custasse a honra e a credibilidade.
Ora, se assim aconteceu com os “donos disto tudo”, porque é que não haveria de acontecer com os administradores de antigas companhias estatais (como a EDP) passadas entretanto para mãos estrangeiras (como as do capitalismo chinês)? Com a arrogante ligeireza de quem se pode permitir todas as fantasias faraónicas, como um museu à beira-Tejo, era difícil resistir à tentação – apesar da longínqua titularidade estrangeira do capital – de estender uma rede de controlo para captar tudo e todos, com os riscos inerentes a essa sofreguidão (incluindo os de cair nas suas próprias armadilhas). Eis como se acaba por chegar às malhas dos tribunais.
Curiosamente, quem estará hoje mais protegido pela impunidade – mesmo quando o segredo do negócio é vender abaixo do preço do custo – é esse pequeno monstro saído do flop do BES chamado Novo Banco. Arrastando consigo a herança pesadíssima do BES – quando supostamente esta seria suportada por um fantasma chamado “banco mau” –, o Novo Banco pôde permitir-se, aparentemente dentro da mais estrita legalidade, dedicar-se a negócios que põem em xeque os interesses do Estado e dos contribuintes. Como? Muito simplesmente, porque essa entidade fantasmagórica chamada Fundo de Resolução estará sempre disponível para cobrir os sucessivos prejuízos acumulados pelo Novo Banco, incluindo aqueles devidos ao seu último negócio ruinoso.
Quem vê a leveza sorridente com que António Ramalho e outros administradores do Banco – sem falar dos elementos dos fundos abutres americanos que se tornaram proprietários/vendedores de terrenos, casinhotos e armazéns nos confins de Portugal – encaram estas fatalidades do “moderno” negócio imobiliário, a imagem que inevitavelmente nos ocorre é a de um festivo faroeste lusitano.
Foi com essa mentalidade, aliás, que as nossas autoridades bancárias e financeiras, de Carlos Costa a Centeno, tornaram possíveis esses negócios aparentemente irreais que foram os do BES/Novo Banco. As “pechinchas” oferecidas por um banco falido português aos especuladores imobiliários americanos reflectem até que ponto chegou o nosso sistema financeiro.