Quantos rios esperam Guterres

Posiciono-me contra a construção de barragens sempre que exista uma alternativa – e elas existem – e sempre que o seu real impacto nos recursos naturais e na biodiversidade não seja considerado por motivações dúbias ou meramente económicas.

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LUSA/ESTELA SILVA

Vinte e quatro anos depois, António Guterres é homenageado por travar a construção da barragem de Foz Côa e salvar as gravuras rupestres da região. Treze anos depois, o Programa Nacional de Barragens de Elevado Potencial Hidroeléctrico (PNBEPH), lançado pelo Governo de José Sócrates, é continuamente homenageado pela construção em curso de um dos maiores complexos hidroeléctricos em Portugal (Sistema Electroprodutor do Tâmega) e pela barragem de Foz Tua, activa desde 2017. O primeiro empreendimento deverá ficar concluído em 2023 e pretende aumentar em 6% a potência instalada em Portugal, alega a concessionária Iberdrola. Já a barragem de Foz Tua chegou com previsões da EDP de um reforço de 6% na capacidade hídrica do país. Para além da óbvia coincidência na percentagem energética prevista pelas concessionárias e de pertencerem a um dos projectos mais emblemáticos da governação de José Sócrates – ainda que nada socrático , o que têm em comum estas duas barragens?

Estas barragens, e todo o PNBEPH, integram uma estratégia política e económica – aqui leia-se nada ambiental  assente em pressupostos errados. Portugal não precisava destas barragens. As previsões da capacidade de produção de electricidade foram sobrestimadas. Os efeitos das alterações climáticas na disponibilidade de água não foram tidos em conta se há menos água, a capacidade de produzir energia é menor e lá se vão os 6%. Os efeitos nefastos na qualidade da água e na biodiversidade não foram considerados. A libertação de gases de efeito de estufa não foi, propositadamente, considerada. Por outras palavras, a viabilidade destas barragens para quem precisa de energia limpa é praticamente nula.

A bacia do Douro é das que mais sofre com as barragens. Do lado português, tanto o Tâmega como o Tua contam já com mais de 200 barreiras cada, incluindo barragens, mini-hídricas e médias e pequenas barreiras e açudes. E este número continua a aumentar, apesar da forte contestação pelas organizações de defesa do ambiente. O rio Tua é um dos poucos afluentes do Douro onde ainda se encontram “santuários” de biodiversidade que carecem de protecção urgente. A incongruência parece-me óbvia: há um rio que precisa de ser protegido, mas foi finalizada (mais) uma barragem há três anos. Em 2019, o Governo autorizou o abate de 1145 sobreiros para a construção das barragens do Tâmega. António Costa justifica este acto de puro vandalismo ambiental com o facto de possibilitar o encerramento das duas centrais a carvão em funcionamento no país, ainda nesta legislatura. Assim o espero.

A espécie humana é também uma das que vive e/ou depende dos rios e não é novidade que as civilizações humanas tendem a fixar-se perto de cursos de água. Precisamos dos rios para nos purificarem a água e deverá haver um consenso na sua importância para a sobrevivência da humanidade e da vida. Construir barragens não produz mais água, mas pode levar a uma perda de água irrecuperável.

Não me posiciono terminantemente contra a construção de barragens. Posiciono-me contra a sobreexploração de um recurso que é renovável do ponto de vista energético, mas não inesgotável. Posiciono-me contra a construção de barragens sempre que exista uma alternativa e elas existem – e sempre que o seu real impacto nos recursos naturais e na biodiversidade não seja considerado por motivações dúbias ou meramente económicas.

Talvez daqui a 25 anos possamos homenagear a EDP ou a Iberdrola. Continuaremos a pagar barragens nas contas da luz, a passar frio no Inverno porque as barragens ficam caras e os lucros anuais destas empresas têm que se manter nos milhares de milhões de euros. Podemos ficar à espera de um Guterres, que voltará à pátria numa manhã de nevoeiro, a quem interesse investir num outro tipo de energia renovável. Ou podemos mobilizar-nos pelo património natural e pela sustentabilidade, até que já não seja possível não nos ouvirem, como fizeram todas aquelas pessoas pelo património arqueológico de Foz Côa.

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