A covid-19, as sucessivas crises sanitárias do século XXI e os quatro cavaleiros do apocalipse

Corrigir a presente realidade passa por ter como principal foco a defesa da saúde das populações e isso obriga-nos a estar preparados para uma próxima pandemia viral – desta vez não estávamos!

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Huma chora enquanto espera para falar com a avó Salma, com covid-19. Nova Deli, Índia Danish Siddiqui/REUTERS

Na casa de arte Staatliche Kunstahalle, em Kallsruhe, está exposta a mais famosa das 15 xilogravuras produzidas entre 1496-98 pelo mestre alemão Albrecht Dürer, Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, para a ilustração da obra O Apocalipse de João. Nela, quatro cavaleiros em atitude bélica, cada um empunhando o seu utensílio – espada, arco, balança e forquilha –, têm sob as patas dos seus cavalos a Humanidade dizimada, pobres e poderosos. O cavaleiro que empunha a espada representa a guerra. O do arco a doença. O da balança a fome. Em primeiro plano, destacado, um cavaleiro empunhando uma forquilha representa a morte, a quem foi dado o poder de matar através da guerra, da doença e da fome.

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Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse Albrecht Dürer

Esta gravura do final do século XV, que impressiona pela sua força e movimento, tem muito a ver com a Humanidade. É intemporal, e a prova disso é a sua recorrente ligação às mais variadas e constantes crises que a assolam.

Foi o que aconteceu nos primeiros 20 anos do presente século, nos quais os quatro cavaleiros andaram literalmente à solta. Foram anos em que aconteceram, qual vertigem, uma sucessão ininterrupta de guerras e de episódios de fome e de doença. Os mortos foram às centenas de milhares. Vejamos.

Após termos entrado no novo século com uma estranha crise – o bug do milénio – passamos a viver uma sequência interminável de outras crises: guerras, crises migratórias, humanitárias, sanitárias, ambientais, climáticas e uma gravíssima crise económica.

No século XXI não houve um único dia sem guerra: Chechénia, EUA, Afeganistão, Iraque, Síria, Líbia, Iêmen, Sudão, Palestina, Nigéria, Crimeia e Ucrânia foram apenas alguns dos países visitados pelo cavaleiro da espada. Em destaque estiveram também os vários radicalismos, sobretudo o islâmico, que exportaram a violência e a morte para todos os continentes, através de centenas de atentados terroristas. Só na Europa houve 33. A paz, que com a razão, a ciência e o progresso foi um ideal maior da época das Luzes, esteve afastada do dia-a-dia de muitos habitantes do planeta. Mero circunstancialismo ou retrocesso civilizacional?

Igualmente constantes foram as crises migratórias e humanitárias. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados o número de pessoas fugindo da insegurança, da miséria e da fome ultrapassa já os 70 milhões, 26 das quais fogem de cenários de guerra e outros conflitos armados. No Médio Oriente (Iraque, Iémen, Síria, Líbia e Palestina), em África (Congo, Somália, Sudão, Moçambique, Níger e Zimbábue) e na Ásia (Paquistão e Myanmar) decorrem as principais crises humanitárias, muitas vezes fora do foco das organizações internacionais e da comunicação social.

Porém, e apesar da desumanidade deste cenário, o que mais tem impressionado são as crises sanitárias pela sua invulgar frequência. De facto, em apenas vinte anos sofremos dois surtos pandémicos e vários surtos epidémicos.

Os primeiros foram provocados por novos vírus respiratórios, o vírus influenza AH1N1 que originou a primeira pandemia gripal do século (2009) e o coronavírus SARS-CoV-2 responsável pela atual pandemia covid-19. O primeiro ficou entre nós, endémico, e passou a integrar o lote dos quatro vírus influenza que todos os anos nos fazem adoecer com gripe. Quanto ao segundo, apesar da natural imprevisibilidade, tudo leva a crer que passe a fazer parte dos microrganismos com que teremos de conviver nos próximos anos.

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Um familiar com um idoso infectado com o novo coronavírus. Santiago, Chile REUTERS/Ivan Alvarado

Quanto aos surtos epidémicos, vivemos vários: a SARS, provocado por um novo coronavírus, que entre 2002 e 2004 afetou 31 países, sobretudo na Ásia, originando um quadro gravíssimo de pneumonia com uma letalidade de 10%; a MERS, provocado por um outro novo coronavírus, surgido pela primeira vez em 2012 na Península Arábica e que, desde então, já afetou 29 países, originando igualmente um quadro de pneumonia grave com uma letalidade de 34%; vários surtos de Ébola, com destaque para o que aconteceu entre 2013 e 2016 na África Ocidental, e que teve uma impressionante taxa de letalidade de 39%; a febre Zica, que entre 2015 e 2016 atingiu sobretudo o continente americano, originando malformações congénitas (microcefalia) em crianças nascidas de mães infetadas.

Perante este cenário arrasador, uma pergunta impõe-se: porquê esta invulgar situação sanitária provocada por vírus? Comecemos pelo contexto.

Quando um surto epidémico ou pandémico afeta a humanidade há dois elementos determinantes: o microrganismo infetante e o ser humano. É à volta de ambos que toda a ação se vai desenrolar. O potencial pandémico está reservado para os vírus que se transmitem por via inalatória, os únicos em que a interrupção da transmissão é difícil ou mesmo impossível. Esta realiza-se, sobretudo, através de um ato que não conseguimos evitar, o ato de respirar. É por isso que os surtos pandémicos ocorridos nos últimos séculos foram sempre provocados por vírus respiratórios – vários vírus influenza e, agora, este coronavírus. Todos os outros microrganismos que se transmitem por outras vias – através de vetores, por contacto direto ou por gotículas, por exemplo – poderão originar, com maior ou menor facilidade e extensão, apenas surtos epidémicos (geograficamente limitados).

Sabemos que a principal causa para o elevado número de surtos infecciosos verificados neste início de século está no atual modelo demográfico e no modo de vida dos seres humanos.

Comecemos pela sobrepopulação. Presentemente somos muitos. Ultrapassamos os sete mil e oitocentos milhões e, apesar da nossa taxa de fertilidade estar em franca regressão (é presentemente de 1,05%, metade do que era há 40 anos), a população mundial vai continuar a crescer, em virtude do número de nascimentos suplantar largamente o dos óbitos. De acordo com as estimativas das Nações Unidas (Department of Economics and Social Affairs), iremos ultrapassar os oito mil milhões em 2023, o de nove mil milhões em 2037 e atingiremos os dez mil milhões em 2057.

Acresce que mais de metade de nós vive agora em cidades. Ao modelo rural (com a população dispersa) sucedeu o modelo urbano (com a população concentrada) e este modelo, em que a proximidade é uma constante, constitui a base ideal para a transmissão dos vírus respiratórios. Estes microrganismos transmitem-se de pessoa-a-pessoa através do ar que se respira, exigindo, pois, proximidade. Estar juntos (proximidade) é a melhor condição para a transmissão destes vírus. É por esta razão que a etiqueta respiratória, o distanciamento social e a proteção facial (máscara) são as mais importantes medidas preventivas de que dispomos para contrariar a sua transmissão.

Por outro lado, o facto de sermos muitos levou-nos a ocupar cada vez mais espaço vital e tal originou uma colisão com os nichos ecológicos dos animais selvagens – passamos a estar mais próximos e aumentamos os nossos contactos com eles. Infelizmente para eles.

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Hospital de Santa Maria, Lisboa, em Abril Rafael Marchante/REUTERS

Acontece que estes vírus pandémicos são todos provenientes de animais, por exemplo, aves selvagens e morcegos. Alterações ocasionais, espontâneas e aleatórias, que ocorrem no seu material genético (mutações), permitem que eles adquiram a capacidade de se adaptarem às nossas células e de se transmitirem de pessoa-a-pessoa.

A título de exemplo, os vírus da gripe que nos têm infetado provêm de aves selvagens; estas transmitem a infeção aos animais de capoeira (galinhas e porcos) que, por sua vez a transmitem aos seres humanos. No caso dos coronavírus a suspeita do reservatório natural recai nos morcegos, admitindo-se, ou uma transmissão direta ao Homem, ou indiretamente através de um hospedeiro intermediário: há suspeitas que na SARS possa ter sido a civeta, uma espécie de gato selvagem, na MERS o camelo e na covid-19 o pangolim.

Ora acontece que todos estes animais, com os respetivos produtos biológicos (secreções, fezes, urina e sangue) convivem em precárias condições de higiene nos mercados de animais vivos, muito usuais na China – situação ideal para a mistura dos respetivos microbiomas. O resto é a natureza a funcionar de acordo com as leis da genética. É devido a esta promiscuidade que muitos dos surtos pandémicos tiveram aí a sua origem.

Sabendo da perigosidade que estes mercados representam em termos de saúde pública, o governo chinês encerrou-os por mais de uma vez; porém, quer a indústria gastronómica quer a medicina tradicional chinesa falaram mais alto – há muitos milhões de yuans envolvidos – e, admite-se que ainda não será desta vez que veremos este tipo de comércio ser definitivamente proibido.

Porém, há mais uma característica do comportamento dos seres humanos altamente favorecedora da transmissão dos agentes pandémicos: as viagens.

Quando há 20.000 anos o Homem vivia da caça e da recolha de alimentos fazia-o à velocidade de quatro quilómetros por hora – andava a pé, quanto muito corria. Era a esta velocidade que ele e as suas doenças transmissíveis se deslocavam. Após a sedentarização esta velocidade aumentou, com a utilização de animais e de embarcações. Mais tarde, no século XVIII, com a revolução industrial e a invenção do motor, essa velocidade sofreu um forte incremento com a utilização de veículos motorizados. Até que os irmãos Wright foram capazes de contrariar a Lei da Gravidade e o Homem passou a voar – em 1903 Wilbur e Orville Wright conseguiram pôr uma máquina mais pesada que o ar a voar. E com o avião passamos a deslocar-nos a velocidades até então inimagináveis.

Hoje viajamos à velocidade de 900 km/hora. É a esta velocidade que o Homem transmite os microrganismos com que está infetado. Por exemplo, uma pessoa que venha da China com destino à Europa com paragem no continente americano, infetado com um vírus com potencial pandémico, disseminará esse vírus por mais de metade do planeta em apenas 12 horas. Presentemente, os vírus viajam de avião, não precisam de visto ou de passaporte, dão a volta ao mundo em menos de 24 horas e à noite estão na abertura dos telejornais. Foi rigorosamente isto que aconteceu com o SARS-CoV-2 em Dezembro de 2019.

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Ioga com distanciamento. Toronto, Canadá Carlos Osorio/REUTERS

A sobrepopulação, o modelo urbano como base da organização demográfica, a pressão sobre os nichos ecológicos de animais selvagens e as viagens são, atualmente, os principais fatores favorecedores da transmissão de surtos infecciosos pandémicos. E sê-lo-ão cada vez mais no futuro. Mas não exclusivamente.

Atente-se que os dois surtos infecciosos mais letais que atingiram a Europa nos últimos séculos, aconteceram no decorrer das duas guerras mais destrutivas que ocorreram neste continente. O primeiro, a peste bubónica, surto infeccioso responsável por mais de 50 milhões de mortos (1/3 da população europeia de então), aconteceu durante a chamada Guerra dos Cem Anos, o mais longo conflito militar da História, que ocorreu entre 1337 e 1453 e destruiu o seu tecido social e económico. O mesmo se passou com a Gripe Espanhola, o surto pandémico mais mortífero para a Humanidade, responsável pela morte de 50-100 milhões de pessoas, que aconteceu na parte da final da Primeira Guerra Mundial – conflito global centrado na Europa (1914-1918) – e que arrasou o tecido produtivo e a economia da maioria das nações europeias.

Em ambos os casos, para além da emergência de novos microrganismos virulentos, teremos que admitir que condições particulares das populações tenham tido um papel determinante na respetiva disseminação. A destruição do tecido produtivo (com os consequentes impactos na produção de alimentos), as carências higienosanitárias (características de todas as crises socioeconómicas prolongadas), a malnutrição (geradora de défices nutricionais e imunitários) e o stresse emocional prolongado (reconhecido com um importante fator de depressão imunológica) ter-se-ão comportado como fatores favorecedores dessa disseminação, em populações com menor disponibilidade imunitária.

A realidade destes primeiros vinte anos do século XXI remete-nos para Dürer e para a sua gravura Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse. De facto, a guerra, a fome, a doença e a morte andaram à solta pelo planeta. Esta realidade tem que ver com a imaturidade e subdesenvolvimento das sociedades, com modelos de desenvolvimento errados e com opções estratégicas inadequadas. Ou corrigimos esta realidade ou o futuro trazer-nos-á mais do mesmo. Até porque a importância dos surtos virais que nos afetaram nestes primeiros anos do século, não nos deve fazer esquecer outros vírus conhecidos que apresentam igualmente potencial pandémico. É o caso dos vírus influenza H5N1 e H7N9, responsáveis por surtos da chamada “gripe das aves”, que “continuam por aí”, associados a uma agressividade muitíssimo maior do que a do SARS-CoV-2, e não nos esqueçamos que este paralisou o planeta.

Corrigir a presente realidade passa por ter como principal foco a defesa da saúde das populações e isso obriga-nos a estar preparados para uma próxima pandemia viral – desta vez não estávamos! Até porque desta crise sanitária global ficou bem patente que sem saúde não há economia e que a saúde até pode ser uma autoestrada para o desenvolvimento.

Agradecimento – Agradeço ao Sr. Prof. Doutor João Alves Dias, professor universitário da UNL, o contributo para a realização deste artigo.

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