O caso do ‘Túnel de Miramar’ – afinal, o que está em causa?
Os cidadãos individualmente ou organizados em partidos ou em outras associações têm o direito de serem informados e de serem chamados a participar na definição de um projeto que terá enorme impacto no espaço público.
No passado dia 31 de julho, o PÚBLICO publicou um artigo sobre ‘o túnel de Miramar’ que refere algumas questões relevantes na análise da questão. Anteriormente, Lusa, JN e o PÚBLICO tinham já publicado notícias sobre o assunto. Alguns aspetos não abordados nessas publicações justificam esta intervenção.
O projeto da Infraestruturas de Portugal (IP), Modernização da Linha do Norte, prevê a construção, entre Gaia e Granja, de três túneis rodoviários e quatro de tráfego ligeiro, quatro passagens superiores de peões e quatro inferiores. Assenta no princípio do não atravessamento da linha ferroviária. É um projeto só com desenhos técnicos de infraestrutura viária que não demonstra preocupações paisagistas de integração da obra no contexto urbano. A consulta pública ocorreu em 2010, tendo então existido pronúncia de um grupo de cidadãos contra o túnel de Miramar.
Em causa está a localização desse túnel em pleno centro da localidade, ocupando o seu eixo central, ao contrário do que se passa com os outros túneis, deslocados do centro das localidades. Miramar, Praia das Rosas (título de curta-metragem de Manoel de Oliveira em 1937) é uma localidade típica das praias de veraneio do século passado com uma identidade urbanística e arquitetónica caracterizada por constituir um núcleo de residências de traça arquitetónica de qualidade reconhecida, com jardins envolventes e integrados em ruas arborizadas que lhe conferem não só agradável sombra como uma dimensão poética indissociável do que hoje se denomina como qualidade de vida. A intervenção privará metade da avenida central de setenta árvores numa extensão de dois quarteirões (da farmácia à rotunda, para quem conhece o local, ou 142 metros a nascente e 132m a poente. Este túnel afeta dois quarteirões, com inclinação de 8,8% a nascente e 4,8% a poente e passagem livre de cinco metros. Diferentemente, os túneis das Moutadas, da Granja e da Praia Nova têm inclinações muito superiores (entre um mínimo de 12% e um máximo de 13,5% a nascente), com a mesma altura de passagem livre nos dois primeiros e 4,3 metros no terceiro, o que permite túneis de comprimentos muito menores.
O túnel será ladeado a norte e a sul por uma passagem de três metros para viaturas e um metro e meio para peões. Nestas condições, não se compreende onde pode a IP vir a realizar ‘a reposição de todas as árvores retiradas’, como afirmou à Lusa a 3 de julho. Reposição por quais e por quantas árvores?
Acresce que a 700 metros a norte deste túnel será construído um outro, nas Moutadas, zona de urbanização recente, sem características arquitetónicas próprias nem arborização da via.
Onde se podem consultar os estudos técnicos que justificam a existência de dois túneis rodoviários tão próximos? Porque é se projecta túnel rodoviário para Miramar quando no atravessamento actual há muitos anos que já só circula tráfego ligeiro? Porque é que o túnel de Miramar, a justificar-se a sua existência, não se situa a sul da localidade, dividindo a meio a distância de 3,6 quilómetros entre o túnel das Moutadas e o da Aguda?
Em causa está também, no projeto, a construção de passagens pedonais, sejam inferiores (túneis de diversos comprimentos e larguras que frequentemente se tornam locais de perigosidade urbana), sejam superiores (elevadores e escadarias com rampas, metálicas ou de betão, no estilo banal que tanto tem degradado a nossa paisagem urbana – previstas para Miramar e para a Granja, outra localidade histórica com património arquitetónico reconhecido). Enquanto obras com grande impacto visual, porque é que não obedecem a projetos de arquitetura que aliem à funcionalidade, conforto e segurança dos peões uma qualidade estética que valorize os locais onde se implantam?
No projeto está ainda em causa o desaparecimento do edifício do apeadeiro, que remonta ao início do século XX e constitui um caso ímpar de arquitetura eclética, indissociável da imagem da Praia de Miramar (só não está classificado, como o da Granja, por não possuir painéis de azulejos), a substituir por seis lugares de estacionamento. Porquê destruir um edifício que concentra memórias, está em bom estado de conservação e tem potencialidades para ser rentabilizado (o que a IP já em tempos se propôs fazer)?
E, finalmente, está em causa a qualidade da participação pública entendida como democracia participativa dos vários atores sociais e não meramente como mecanismo formal de duração limitada, tal como previsto na lei, designadamente, num projeto que legalmente obedeceu ao requisito da consulta pública em 2010 e só dez anos depois é lançado no terreno.
Foi tardiamente que surgiu uma petição pública contra o túnel de Miramar que reuniu mais de 2000 assinaturas. A ela reagiu o presidente da Câmara Municipal de Gaia com a presença numa reunião em que se comprometeu a rever o projeto com a IP no sentido do melhoramento paisagístico. Essa atitude é louvável, mas também ela tardia. A câmara fez prova de não desejar a participação cidadã ao adiar por mais de um ano a informação sobre o projeto, pedida formalmente, por várias vezes desde junho 2019, pelo Bloco de Esquerda, na Assembleia Municipal.
Os cidadãos individualmente ou organizados em partidos ou em outras associações têm o direito de serem informados e de serem chamados a participar, sem terem de recorrer a petições públicas nas redes sociais. Pretendem participar na definição de um projeto que terá enorme impacto no espaço público, contribuindo com propostas para a revisão das vertentes que afetam a qualidade da vida das zonas residenciais, tanto do ponto de vista do seu uso funcional e social-relacional, como da qualidade ambiental a assegurar, e ainda do ponto de vista estético, isto é, da manutenção da sua imagem urbana que lhe confere identidade.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico