O lugar da Cultura no plano estratégico de Costa Silva para 2020-2030
Parece notar-se uma consciência alargada de que o momento actual é, de facto, muito exigente e constituirá uma oportunidade privilegiada para errar menos e fazer diferente e melhor em diversas áreas.
Advertência prévia: sabemos bem qual costuma ser o destino mais frequente de muitos planos estratégicos encomendados pelos sucessivos governos ou por determinadas entidades/organismos públicos em Portugal nas últimas décadas. Ainda há semanas, reavivando a nossa não poucas vezes amnésica memória colectiva, um conhecido periódico nacional recordava o elucidativo histórico pouco impactante de muitas destas iniciativas. A sua não implementação efectiva em variadíssimos casos, não obstante o elevado custo para o erário, deve-se geralmente a um ou vários de três factores: mudanças de elencos governativos derivadas de actos eleitorais; flutuações/rotações específicas, em áreas-chave, ao nível dos seus protagonistas ministeriais; e/ou uma ausência (por vezes dissimulada) de consenso interno, na cúpula do poder, quer em relação à própria necessidade de se solicitar externamente um diagnóstico-relatório desta natureza, quer, ao invés, no que toca à aplicabilidade de certas conclusões e recomendações emanadas desses estudos.
Há um indesmentível viés ideológico associado a estes planos, marcado, para o bem e para o mal, pelo preconceito e pelo cepticismo. Mas, em contraponto, há duas ideias fortes e de inegável impacto público e mediático que o Estado veicula indirectamente e que, de forma tácita, vão sustentando essa opção de solicitar contributos exógenos: a sua abertura à (auto-)crítica institucional, realizada assim de um modo à partida neutro, isento e não condicionado ou deturpado por constrangimentos ou pressões do próprio aparelho governamental; e a sua postura descentrada, de uma máquina política que não se fecha em si mesma, que arrisca sair da sua “zona de conforto” e se observa a partir de fora com distanciamento, que (democraticamente) aceita a possibilidade de uma “gestão” partilhada e participada pelo colectivo de cidadãos, movimentos e instituições.
Outros encaram estes planos como “rebuscados esquemas de powerpoint milagroso” em que se explica quase tudo a partir daquilo que toda a gente já sabe, sem apresentar um visível valor acrescentado e/ou sem explicitar uma visão de futuro que não seja demasiado genérica ou vaga. O facto de, nalguns casos, não se conhecer mais em rigor o processo de elaboração desses estudos (a eventualidade de serem encomendados a uma única figura, como no caso de Costa Silva, também é amiúde um motivo de crítica), que personalidades e entidades foram auscultadas, que amplitude e detalhe de conhecimento da realidade subjazem aos seus autores, qual o eventual grau de interferência das entidades que encomendam na urdidura dos documentos apresentados — são questões igualmente assíduas no quadro de percepções da opinião pública.
Se aparentemente há, assim, uma vasta panóplia de razões, mais ou menos legítimas/consistentes conforme o lugar, motivação e enfoque da fala, para encarar esse tipo de práticas como algo mais decorativo e formal do que incisivo e transformador, ao mesmo tempo parece notar-se uma consciência alargada de que o momento actual é, de facto, muito exigente e constituirá uma oportunidade privilegiada para errar menos e fazer diferente e melhor em diversas áreas. Daí que a acção baseada num pensamento bem alicerçado e estruturado, com sentido de realidade, urgência e antevisão, se afigure fulcral para traçar um esperançoso caminho de futuro também, mas não só, para a área cultural.
Reportando à Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030 elaborada por António Costa Silva e apresentada em Julho deste ano, três notas prévias são inevitáveis: a presente conjuntura, numa recessão sem paralelo a nível mundial, é claramente decisiva para uma profunda reflexão crítica em torno dos paradigmas que têm norteado a intervenção e regulação estatais de diversos campos da sociedade e da economia; nos próximos anos Portugal vai ter à sua disposição um avultado suporte financeiro de 45,1 mil milhões de euros, aos quais se juntam os 12,8 mil milhões que faltam do Portugal 2020 e, segundo os especialistas, a possibilidade de mais perto de 11 mil milhões em empréstimos (com condições preferenciais) ligados ao plano de recuperação, o que perfaz um valor global de quase 70 mil milhões de euros para aplicar até 2030; e o eixo Cultura-Artes-Criatividade, fortemente afectado pelo actual panorama e com debilidades crónicas amplamente identificadas (mas também com entusiasmantes potencialidades e horizontes de crescimento), não pode, de forma alguma, ficar arredado deste incontornável processo de (re)orientação estratégica do país.
O documento do reconhecido engenheiro, com mais de 140 páginas, assenta em dez eixos, sendo o último designado de “Cultura, Serviços, Turismo e Comércio”, ao qual o autor dedicou perto de três páginas e meia. Recorde-se que o plano não alude às formas de financiamento nem estima o custo aproximado de cada uma das medidas propostas, questão que é remetida para decisão governamental. No imediato, este trabalho vai servir de base ao programa de recuperação que Portugal vai apresentar em Bruxelas em Outubro atendendo ao envelope financeiro já aprovado no Conselho Europeu.
A nível do ecossistema cultural, há premissas que não poderão deixar de ser tidas em conta na concretização deste plano. Por um lado, não é viável nem sensato avançar com medidas novas sem efectivamente resolver, ao mesmo tempo, lacunas profundas e estruturais que vêm de trás, várias delas assinaladas no diagnóstico do presidente da Partex. Isto quer dizer também que o investimento financeiro na implementação de ideias inovadoras não deverá significar um ainda maior abandono ou depauperamento de determinadas áreas-chave do universo cultural e artístico que já se encontravam num estado de elevada fragilidade e desgaste. Este aspecto deve ser, aliás, bem comunicado e explicado, de modo claro, pedagógico e acessível, pelo Governo aos cidadãos ao prestar contas sobre as modalidades e critérios de aplicação da significativa remessa financeira oriunda da União Europeia. (O chamado serviço público também deve passar, e muito, por isso.) Por outro lado, não se pode cair na perigosa tentação de “apenas” reagir às múltiplas solicitações do aqui e agora, mas também reflectir sobre as consequências, o day after — sobre o que, numa perspectiva de médio-longo prazo, se pretende para o desenvolvimento da Cultura e das Artes no amanhã. Será num manuseio equilibrado, sensato e ambicioso destas duas “balanças” nucleares que se desenhará a utilidade e eficácia, maiores ou menores, da estratégia apresentada por Costa Silva.
Em relação às artes visuais e performativas, a análise do já apelidado “para-ministro” do Governo, sem se afigurar particularmente surpreendente ou disruptiva, não deixa, contudo, de chamar a atenção para alguns aspectos que são relevantes porque atentos ao devir e aos novos tempos, colocando o enfoque em três ideias centrais quando se olha para o seu “Programa para a Cultura, Criatividade e Inovação”: a imersão-articulação dos criadores e das suas obras com o meio envolvente, com o espaço público, com os contextos não convencionais, com os equipamentos não culturais, com os ecossistemas naturais nos seus diversos estratos e interfaces; a criatividade digital, com o incentivo crescente à investigação, à criação de repositórios e arquivos digitais no domínio artístico, e à incorporação da tecnologia nos processos inventivos; e a adopção de lógicas de rede nacional no que toca aos espaços de apresentação performativa e de dinamização de residências artísticas, bem como no campo da arte contemporânea e dos seus circuitos de apresentação. A atenção às gerações mais jovens, aos talentos emergentes, a promoção de novas áreas em expansão, a descentralização de dinâmicas e actividades, e a ênfase colocada no apelativo “triângulo amoroso” arte-ciência-ambiente e nas inúmeras virtualidades desse cruzamento multidisciplinar constituem os principais leitmotiv da perspectiva estratégica proposta por António Costa Silva para o universo cultural. Complemento esta visão sublinhando a vital importância da formação dos agentes culturais em torno das ferramentas digitais e do recurso às novas tecnologias.
Se a presente pandemia veio incrementar ainda mais a aceleração da evolução digital que já estava em intenso curso anteriormente, por outro lado, a temática ambiental e, em estreita conexão, o activismo ecológico centrados na urgência da sustentabilidade natural revelam-se crescentemente (a par da questão virológica e, diria, do hiperindividualismo) um terreno particularmente fértil e plural para a construção de aproximações artísticas inovadoras, questionadoras e implicadas com a actualidade. As próprias dimensões psicossocial e ética destas matérias fazem emergir inúmeros “gatilhos” ideológicos que acabam por convocar uma visível amplitude, à partida nem sempre expectável, de protagonistas, conhecimentos, práticas, princípios e valores ligados a disciplinas diversas e geralmente distantes e pouco dialogantes entre si, as quais podem assim confluir numa abordagem estética integrada e transversal tendo a criatividade como epicentro e motor.
O enfoque na eco-arte é, assim, notório neste documento estratégico, mormente quando se preconiza a criação de uma pertinente rede de eco-residências artísticas que privilegiem espaços outdoor enquadrados em contextos museológicos, patrimoniais e/ou dotados de biodiversidade — algo, aliás, que já acontece, ainda que de modo muito desigual em termos de estruturação e assunção, nalguns pontos do país. Agregando artistas, cientistas e designers, o objectivo passa pela criação de projectos que explorem recursos endógenos pouco utilizados ou desconhecidos, que se concentrem em processos de pesquisa e problematização sobre micro-realidades, que fomentem dinâmicas económicas numa escala local-regional, que envolvam as comunidades numa lógica colaborativa.
Este cruzamento entre a criatividade artística e os valores da ecologia profunda não constitui novidade, remontando às décadas de 60 e 70 do século passado, quando, de forma mais direccionada e saliente, começaram a emergir abordagens para compreender as relações humanas e ambientais com maior profundidade, sentido crítico e arrojo criativo. O surgimento da chamada “arte ecológica” (e, inclusive, de outros quadrantes exploratórios como a land art ou a arte povera), que se reflecte numa variedade significativa de manifestações (escultura, pintura, fotografia, cinema, vídeo-arte, instalação, cinema, poesia e outras), tem visado assim a promoção de mudanças ao nível da consciência dos públicos, consolidando as inter-conexões entre arte, cultura, ciência e sustentabilidade. Nomes referenciais como Herman de Vries, Andy Goldsworthy, Nikolaus Lang, Lili Fischer, Hans Haacke, Alan Sonfist ou o reconhecido artista multidisciplinar alemão Joseph Beuys (1921-1985), entre muitos outros, privilegiaram processos e criações artísticos com aproximações experimentais e originais à natureza e à questão ecológica. Nos anos 80 e 90 de Novecentos, uma plêiade de artistas, arquitectos, designers e engenheiros civis continuaram a aprofundar formas de vincular arte, estética, ecologia e cultura. Esta interacção do meio artístico com a realidade natural, que amiúde agrega também um know-how científico e tecnológico, concretiza-se, em larga medida, quer na implementação de formatos em contextos não convencionais (como a arte na paisagem), quer na apresentação de criações que, pelo seu conceito, estrutura e recepção, se implicam claramente na temática ambiental, com um frequente investimento paralelo, ao nível da mediação cultural, na vertente da educação ambiental.
Em Portugal, várias dinâmicas e experiências têm sido realizadas neste âmbito, quer integradas nas agendas de equipamentos culturais municipais, quer em festivais e outros eventos temáticos em espaço público, quer ainda em iniciativas de programação cultural em rede agregando diferentes territórios. Essas criações têm-se enquadrado sobretudo nos domínios da dança contemporânea e suas derivações, música instrumental (erudita e world) e teatro comunitário, bem como, com impacto crescente (veja-se, entre outros, os exemplos dos festivais Lisboa Soa, Walk & Talk nos Açores ou Lavrar o Mar no Algarve), num vasto e fértil universo multidisciplinar onde pontuam, em grande medida, percursos sensoriais, performances e happenings enquadrados na morfologia paisagística e instalações dotadas de interactividade.
Por outro lado, a formação de uma Rede de Residências Artísticas a nível nacional, nos campos das artes performativas e visuais, constitui uma proposta muito relevante para o milieu cultural na medida em que se constata uma distribuição muito heterogénea e parca de contextos onde seja viável, do ponto de vista físico, logístico e técnico, concretizar eficazmente este tipo de apoio aos processos criativos nas fases de brainstorming inicial, pesquisa, experimentação e ensaio. Existem muitas regiões do país claramente deficitárias a este nível, bem como numerosos espaços indiferenciados, de propriedade municipal, actualmente devolutos ou de aproveitamento reduzido e irregular, que poderiam ser (re)utilizados para este fim — mormente nos chamados “territórios de baixa densidade”, já oficialmente identificados.
Mas para concretizar esta teia formal no território continental e insular espera-se também uma útil e necessária sensibilização pedagógica da opinião pública e dos poderes locais para a extrema relevância do apoio ao meio artístico na sua fase embrionária (por via da realização de residências, mas também de encomendas/co-produções e não só), algo que ainda teima em ser percepcionado, aqui e ali, como um estádio menos relevante e pouco “produtivo” do labor artístico, estando as atenções habitualmente focadas na fase mediática de apresentação pública das criações. Isto também está intimamente relacionado com a própria forma como certas instituições oficiais encaram e valorizam (ou não) o factor “tempo” quando observam o modus operandi nas artes. É frequente falar-se, e bem, da crónica falta de financiamento e de outras condições materiais para criadores, intérpretes e técnicos desenvolverem harmoniosamente o seu trabalho, mas é imperioso não esquecer que eles também necessitam, e muito, de um tempo longo, de maior ou menor duração conforme os casos, para desenvolver um pensamento criativo e práticas (não lineares) de auscultação, questionamento e interrogação do mundo. A vivência lentificada e substantiva do tempo por parte desses operários em permanente (re)construção é diametralmente diversa da temporalidade associada às leis de mercado, à competição económica, ao lucro, à velocidade (volátil e difusa) das rotinas automatizadas dos dias (breves).
Essa rede nacional de residências artísticas requer assim um compromisso sério das instituições locais (públicas e independentes), com incentivo e apoio estatais, para um investimento na criação/requalificação de espaços visando a sua adequação a essa finalidade, de modo a criar uma notória atractividade em termos de mobilidade e fixação de massa crítica e de criadores/estruturas profissionais sobretudo, mas não apenas, em geografias mais periféricas. Paralelamente, é crucial a articulação e integração desse plano de residências nas estratégias de programação cultural dos contextos territoriais em que se realizam, sob pena de constituírem práticas isoladas e descontextualizadas, sem ligação e repercussão nas realidades locais e suas comunidades, e sem consequência ou lastro posterior. Neste particular, afigura-se essencial uma aposta ainda mais vincada em adequadas estratégias de mediação cultural, através da dinamização de actividades paralelas e complementares às residências, as quais passam, como é sabido, por ensaios abertos, talks, pequenas apresentações performativas em modo preview e outros mecanismos de envolvimento e interacção com públicos.
Quanto à Rede Nacional de Cineteatros e à sua maior capacitação profissional e técnica que Costa Silva também elenca como uma das prioridades estratégicas no seu planeamento cultural (algo que claramente saudamos), já teci variadas considerações sobre a mesma num artigo anterior, tendo aí sistematizado sete ideias-chave a ter em conta na sua implementação. Nesta linha, apenas pretendo frisar sinteticamente três pontos, tendo um deles a ver directamente com o orçamento anual alocado pelo Estado a esta rede. Na reflexão que fiz preconizava que um investimento público inferior a um valor global mínimo de 5 milhões de euros anuais para apoio à programação artística dos espaços que a integram seria irrisório e pouco eficaz. Será, contudo, importante que essa fasquia financeira possa ser mais ambiciosa, de modo a que a medida tenha uma abrangência tipológica/estrutural/geográfica e uma densidade de apoio material ainda mais significativos, as quais – note-se – a presente e futura realidade exige e impõe cada vez mais.
Julgo ainda muito pertinente que o Governo, ao nível da estrutura interna da tutela da Cultura, designe uma equipa própria para acompanhar em proximidade e permanência o projecto da Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses [RTCP]. Só assim será possível uma adequada monitorização do seu funcionamento, bem como a consolidação de uma capacidade instalada de análise cuidada e atempada das candidaturas para credenciação e apoio à programação (e de publicação dos resultados), quer ainda, e acima de tudo, um real trabalho de imersão-relação-mediação da máquina governamental com os territórios envolvidos, de modo a que a mesma possa ter um conhecimento detalhado e actualizado das múltiplas realidades com as quais interage.
Por fim, um ponto absolutamente central em termos quer de estratégia de gestão interna quer de comunicação institucional estatal para o exterior. Com a implementação da Rede o país passa a dispor de um paradigma misto de apoio estatal às artes: de um lado, os três programas de suporte à criação (sustentado, projectos e em parceria) geridos pela Direcção-Geral das Artes; e do outro, um modelo de contribuição financeira para a vertente da programação artística desenvolvida por entidades que componham a RTCP. Mas esta nova dupla realidade deverá estar atenta a dois perigos. Um deles prende-se com a extrema importância de o sistema vigente não alimentar a propensão para as entidades maiores — dotadas de condições mais robustas em termos organizacionais e de maior conhecimento e experiência em torno dos procedimentos formais ligados às candidaturas — acumularem diferentes apoios provindos do poder central. Assim, e ainda que não apenas por esta via, poderá evitar-se o incremento de desigualdades, ambientes concorrenciais, precariedade laboral, descontinuidades e instabilidade das planificações, bem como de uma indesejável (e distorcida) mescla entre diferentes perfis e vocações de agentes culturais. O outro tópico não deixa de ser, de alguma forma, óbvio: assegurar que a criação da RTCP e a alocação de um orçamento para auxílio à programação da mesma não impliquem, de forma alguma, uma eventual redução ou enfraquecimento do financiamento para apoio às artes.