40 dias na estrada dos vinhos portugueses

Quantos mundos cabem numa garrafa de vinho? Quantas viagens nos permitimos fazer quando tomamos um copo? O que propomos é uma viagem. A nossa durou 40 dias e percorreu mais de oito mil quilómetros em busca das histórias dos 62 produtores que participam este ano na edição digital do Vinhos de Portugal.

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Luís Sottomayor, o enólogo do Barca Velha, de moto na Quinta da Leda Fernando Donasci/Out of Paper

“O pneu furou”, anunciou Pedro. “Há algum lugar à sombra?”.

“Não há sombra, Pedro”. Estamos a poucos metros das vinhas onde nasce o vinho mais icónico de Portugal, na Quinta da Leda, no Douro Superior, quase na fronteira com Espanha, sob o sol de 40 graus do meio-dia. Luís Sottomayor, que já nos guiara na sua moto 4x4 pelos segredos da vinha do Apeadeiro, iria agora guiar-nos até à oficina. Mas se é para furar o pneu, que seja pelo menos aos pés das uvas que dão origem ao Barca Velha, não é?

Sottomayor era o décimo enólogo que encontrávamos desde o início da viagem, cinco dias antes, justamente na semana em que o Douro vivia um calor avassalador. Durante 40 dias iríamos percorrer mais de oito mil quilómetros de estradas, o equivalente a atravessar Portugal de Norte a Sul mais de onze vezes. Douro, Porto, Beira Interior, Vinhos Verdes, Bairrada, Alentejo, Lisboa, Península de Setúbal, Dão e Lafões, Tejo; onde havia vinho, lá estávamos nós para gravar, fotografar e ouvir as histórias dos 62 produtores que participam, este ano, na 7ª edição do Vinhos de Portugal (de 23 a 25 de Outubro, desta vez em versão digital), um evento dos jornais PÚBLICO, O Globo e Valor Económico, em parceria com a ViniPortugal. 

Fomos para a estrada sob o fantasma do covid-19 e com todos os cuidados que o pós-confinamento e a pandemia nos impunham. Queríamos que os produtores contassem histórias inéditas. Eles e elas, tão acostumados a viajar por todo o mundo para promover os seus vinhos e que há meses não podiam sair para lado algum. Era quase uma intimação logo à chegada: “Gostaríamos que fizesse algo que nunca fez, filmasse onde nunca filmou, tirasse uma fotografia que nunca foi feita ou contasse a história que ficou por contar.” Tomás Roquette foi a nossa primeira ‘vítima’. Só parámos para jantar às dez da noite, sob um calor de 39 graus, mas na boa companhia dos nossos anfitriões e de algumas garrafas, entre elas a do Quinta do Crasto, Vinha Maria Teresa; vinhas velhas de mais de 100 anos com 50 castas diferentes, onde tínhamos estado, horas antes, a filmar. 

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Vista aérea da propriedade de João Portugal Ramos, no Alentejo Fernando Donasci/Out of Paper

Chegávamos munidos de máscaras e álcool gel e com dois amigos também inseparáveis: o drone e uma tela branca como a que os pintores usam. Se fazer vinhos é uma arte, porque não colocar o artista no centro do quadro com o seu habitat ou essência como moldura? Dirk Niepoort quis tomar um duche, de calções. Com o Jorge Alves da Quinta Nova Nossa Senhora do Carmo, fomos ‘impiedosos’. “O seu mundo, não é o vinho? Por que é que você não se deita no meio das vinhas como as crianças fazem na neve?” Jorge gostou da brincadeira e enfrentou o sol escaldante do Douro de olhos quase abertos.

Também enfrentámos tempestades. A maior, em Castelo Rodrigo, no Centro de Portugal, com o Rui Roboredo Madeira. Já estávamos no topo das muralhas do castelo quando a chuva começou. Entre a fuga das ruínas, as roupas encharcadas e a ventania, ainda conseguimos gravar o vídeo com o pôr-do-sol como coadjuvante. 

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Bernardo Alves, da Adega Mãe, colocou um barco no meio da vinha para a sessão fotográfica Fernando Donasci/Out of Paper

Ao longo do caminho fomos ficando cada vez mais ousados. “Será que não podemos colocar este barco no meio das vinhas? “, arriscámos com Bernardo Alves, da Adega Mãe, uma história que mescla bacalhau e vinho. Ao sim imediato seguiu-se uma operação que mobilizou as duas equipas. Além de levarem o barco, encheram-no com dezenas de garrafas do vinho Dory, cuja história e origem são inspiradas nos pequenos barcos chatos da pesca de bacalhau da Terra Nova. Corremos atrás de animais. Fizemos de tudo para controlar as ovelhas na Herdade dos Coteis e impedir que derrubassem a tela por cima de José Venâncio; perseguimos os patos, claro, com o Luís Pato. O Nuno Cancela de Abreu e o Camilo Leite, das Boas Quintas, no Dão, surpreenderam-nos com dois burros nas vinhas e o David Codeço, com seis cães.

São tantas as histórias que dariam um filme. A Lígia Santos, do Caminhos Cruzados, contou-nos que às vezes terminava o dia tomando um copo no telhado da adega. Não é preciso nem dizer onde é que ela foi parar. O Alexandre Relvas foi para cima de um sobreiro e o Luís Cabral Almeida, da Herdade do Peso, escolheu uma oliveira de dois mil anos para fazer uma prova.  O pai Luís e o filho José Lourenço, da Quinta dos Roques, emocionaram-nos pela cumplicidade e o amor que partilham pelo que fazem. O João Ferreira, da Quinta do Vallado, entusiasmou-se ao falar da infância, assim como o Dominic Symington, que subiu nas barricas, como uma criança, para mostrar as aventuras dos tempos de menino.

Ficámos enfeitiçados com a magia das vinhas velhas da Tapada do Chaves, as mais antigas registadas do Alentejo, onde tivemos o privilégio de ser guiados pelo seu mentor, Pedro Baptista, o enólogo do Pêra Manca. No Paço do Morgado de Oliveira, do século XIV, António Maçanita levou-nos a percorrer 755 anos de história na fusão entre passado e presente. Em Cheleiros, na região de Lisboa, foi o brasileiro André Manz, uma espécie de Indiana Jones local, quem nos guiou pelo pequeno museu só com peças encontradas em escavações nas suas vinhas. Ele é o único em todo o mundo a fazer vinhos com a casta Jampal. Em Colares, impossível não nos maravilharmos com vinhas que nascem na areia, acompanhados pelo Hélder Cunha, da Casca Wines, e sentir como a brisa e o sal do mar influenciam este pedacinho de vinha.

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Hélder Cunha da Casca Wines, deitado na areia onde crescem as suas vinhas Fernando Donasci/Out of Paper

Ficámos quase sem respirar quando entrámos na Frasqueira, onde a família de José Maria da Fonseca guarda o tesouro maior. Entre teias de aranha e luzes de lanterna, deixámo-nos levar por séculos de histórias contadas pelo Domingos Soares Franco e o António Soares Franco, sexta e sétima geração respectivamente, através das garrafas guardadas há quase 200 anos.

Quando nos aproximamos da época das vindimas começamos a exigir ainda mais. O Filipe Cardoso, da Quinta do Piloto, acabou num camião cheio de uvas prestes a serem descarregadas na adega. Será que ele se afoga? O fotógrafo também teve que subir para um tractor para tirar a foto. Será que ele cai? Eu levei com uma chuva de uvas para gargalhada geral dos trabalhadores no seu primeiro dia de vindima. Sim, levei um banho.

Ao longo do caminho pensávamos que nada mais nos surpreenderia. Estávamos completamente enganados. Ainda na Península de Setúbal, na Quinta Brejinho da Costa, inundámos o enólogo Luís Simões com perguntas sobre a experiência com as garrafas de vinho que estagiam no fundo do mar. Já tínhamos quase 60 produtores filmados quando chegamos à vinha de pedras roladas da Falua guiados pela enóloga e directora-geral Antonina Barbosa, e já estávamos quase no fim da viagem quando conhecemos a casta Batoca, só produzida na Quinta de Santa Cristina, em Celorico de Basto, na região dos Vinhos Verdes.

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Os bastidores da viagem: preparando a sessão fotográfica com ovelhas na Herdade dos Coteis dr

Perdemo-nos na estrada. Era para irmos em direcção a Moura, no Alentejo, e fomos na direcção contrária, para Santarém. Perdemo-nos duas vezes de carro no meio das vinhas da Quinta do Bom Retiro, da Ramos Pinto. Coitado do Jorge Rosas que teve que esperar por nós. Furámos de novo o pneu, desta vez a cinco minutos da Herdade do Esporão, no Alentejo. Deslumbrámo-nos com o nascer e o pôr-do-sol nos sítios mais inesperados, ficámos em silêncio diante de paisagens indescritíveis. Surpreendemo-nos com a verdadeira diversidade das vinhas deste país. Em 62 produtores, não houve uma história igual à outra. Da floresta da Quinta dos Carvalhais, com a Beatriz Cabral Almeida, à floresta da Julia Kemper, ambas no Dão; das ruínas do século XVI da Quinta de Covela com o Tony Smith às da Quinta da Torre, com o Anselmo Mendes.

Antonina Barbosa, Falua DR
Nuno Cancela de Abreu, Boas Quintas DR
Simone Duarte e o fotógrafo Fernando Donasci, no último dia de uso da tela que serviu de fundo para todas as fotos dr
Dirk Niepoort a ser fotografado filmado por Pedro Kirilos dr
O "Indiana Jones" André Manz na sessão de fotografia dr
Fernando Donasci e Simone Duarte no barco colocado no meio da vinha da Adega Mãe dr
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Antonina Barbosa, Falua DR

Fomos embalados pelo som do violão do Álvaro Martinho na magnífica Quinta das Carvalhas, no Douro, e, perdemo-nos nos jardins verdejantes da Quinta de Aveleda com o António Guedes. Viajámos até ao tempo dos romanos com as talhas da Catarina e do Pedro da Herdade do Rocim e as do José Piteira da Encostas de Alqueva, e percorremos o admirável mundo sustentável do Esporão, na Quinta do Ameal, na região dos Vinhos Verdes e na Quinta dos Murças, no Douro. Passámos o dia no palácio que o rei Dom João V deu de presente à sua amante Dona Maria e onde hoje o ‘rei’ Júlio Bastos faz os seus vinhos, e quase terminámos afogados num lagar de uvas com o João Portugal Ramos.

Quando tivemos esta ideia chegaram a dizer-nos que seria impossível. Foi cansativo, desafiante, por vezes stressante, com o coronavírus sempre a pairar sobre nós, mas foi uma imersão inesquecível no mundo dos vinhos, nos seus diferentes terroirs, aromas, castas, paisagens, geografias, nuances, pessoas e histórias. Tudo foi possível porque estes 62 produtores acreditaram. Está tudo online para quem quiser viajar com os melhores contadores que poderiam encontrar: os próprios produtores e enólogos que fazem do vinho a sua vida. Quantos mundos cabem mesmo numa garrafa de vinho?

Viaje em www.vinhosdeportugal2020.publico.pt


Estiveram na estrada todo o tempo com a jornalista Simone Duarte, que foi a idealizadora da plataforma digital do Vinhos de Portugal, o videógrafo Pedro Kirilos e o fotógrafo Fernando Donasci. As produtoras Celma Carreira e Marcella Viana percorreram trechos distintos do trajecto.

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