A mensagem de fundo dos FinCEN Files
O branqueamento é uma espécie de cancro social, que mina a segurança nacional e a sã organização social e económica. E este perigo não é muitas vezes sentido pela sociedade, porque a vítima, ao contrário do terrorismo, nem sempre é visível.
A divulgação dos FinCEN Files é mais um valoroso serviço do ICIJ à democracia representativa e às liberdades cívicas, ao expor os fluxos financeiros ilícitos que se prevalecem indevidamente de uma das mais importante infraestruturas societais: o sistema financeiro.
Faço notar que o branqueamento é uma espécie de cancro social, que mina a segurança nacional e a sã organização social e económica. Porém, este perigo não é muitas vezes sentido pela sociedade porque a vítima, ao contrário do terrorismo, nem sempre é visível. Devido a isto, existe à escala global uma forte mobilização na prevenção e na punição destes perigos, cabendo destacar o papel de liderança mundial da UE, de que é exemplo o Plano de ação para um novo sistema europeu contra o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo, apresentado em 2020.
É também de evidenciar que Portugal, entre 2017 e 2020, aprovou legislação com grande folêgo de perfuração do anonimato ou do alargamento dos deveres preventivos, nomeadamente a comerciantes e prestadores de serviço que transacionem bens ou prestem serviços, quando o pagamento da transação seja realizado em numerário e o valor daquelas seja igual ou superior a 3000€, independentemente de o pagamento ser realizado através de uma única operação ou de várias operações.
Isto confirma que entrámos já numa nova fase, em que a prevenção do branqueamento respeita a toda a economia – e não apenas ao setor financeiro, como por vezes é apresentado –, posto que todas estas alterações, e outras que já se perfilam, introduzem mudanças significativas no status quo, em especial na avaliação do risco, controlo e fiscalização, incluindo judicial, como a acusação no processo Operação Lex confirmou.
A meu ver, a mensagem de fundo dos FinCENFiles é a de sinalizar a importância crescente do tema dos fluxos financeiros sustentáveis para a longevidade das empresas, em especial para a criação e preservação de valor, em particular da sua reputação como intermediário de confiança. E, neste sentido, têm mais importância para a segurança nacional e para os interesses económico-financeiros de Portugal ou da comunidade, inclusive empresarial, do que habitualmente se pensa.
Destaco que o risco associado à fiscalização nunca foi tão elevado, muito devido ao risco reputacional decorrente da pressão mediática desencadeada pela afirmação nas redes sociais de uma dinâmica de reprovação moral dos fluxos financeiros ilícitos, de que os FinCEN Files são o último exemplo antes do próximo. Não podendo mesmo excluir-se o perigo de instrumentalização numa campanha de destabilização comercial, com efeitos imprevisíveis na licença social da marca, no fluxo continuado de clientes e investidores, na cotação bolsista (a cotação do HSBC ontem foi a mais baixa dos últimos 25 anos), ou na continuidade dos postos de trabalho nas entidades expostas.
Nesta medida, confirmam a importância da efetividade do controlo interno na hierarquia de prioridades para a avaliação da gestão como sã e prudente, em especial para proteger o soft power e company branding. Este controlo será tanto mais efetivo se consistir numa avaliação com eixo no alinhamento do risco estratégico com o risco reputacional, posto que experiências como a do escândalo Luanda Leaks confirmam que, entre nós, o risco empresarial permanece excessivamente centrado no risco financeiro, e que o risco reputacional continua incompreendido ou secundarizado.
Os FinCENFiles desafiam igualmente as profissões, em particular as ligadas à prática do direito, a reafirmarem a importância de ser reconhecido que o Direito é um valor civilizacional e não um produto ou uma mercadoria. E a repensarem o modus operandi, no sentido de atribuir importância fundamental ao cumprimento dos ditos deveres preventivos, em reconhecimento de que perdeu época a conceção que encarou estes deveres como algo de exterior à função, porventura reflexo de uma cultura “eu não sou polícia”. Isto é porque estes deveres estão ao serviço da proteção da sociedade com a finalidade de impedir a instrumentalização do sector empresarial e das profissões sujeitas a códigos deontológicos, por fluxos financeiros ilícitos. Fluxos que, como é sabido, estão na origem de trágicas destruições de valor ocorridas no sector empresarial nacional e que são suscetíveis de colocar em causa a segurança e o prestígio civilizacional de Portugal, a integridade do sistema fiscal ou a recuperação da economia e do emprego em face da situação originada pela pandemia. Ademais, agravaram a dinâmica de perda de controlo, para interesses estrangeiros, de bancos e empresas portuguesas preponderantes, nalguns casos até com algum historial, o que é nefasto para a independência nacional.
Devido ao que mencionei, os FinCEN Files incitam à oportunidade da proposta feita em janeiro de 2016 no artigo “A Mina do Branquemamento”, que aqui renovo: “lançar sob a égide do Parlamento uma campanha nacional de pedagogia destinada a consciencializar a opinião pública e os decisores sobre a importância da prevenção do branqueamento.”