Que Universidade em 2030?
O início de uma década é sempre um momento para reflectir sobre questões estratégicas e sobre o futuro das instituições. Em plena pandemia, essa reflexão é imperativa. O plano do Governo para a recuperação económica aponta alguns caminhos, porém, no que concerne à Universidade, as ideias apresentadas são convencionais, sem ambição nem visão transformadora. É óbvio que a pandemia deixou marcas profundas em todas as actividades e tornou evidentes as fragilidades causadas pelas desigualdades sociais. O impacto causado no ensino, em geral, e no ensino superior, em particular, é também indelével.
Esta célere transição evidenciou: a extraordinária capacidade de adaptação dos professores e dos estudantes; as virtudes e as limitações do ensino à distância; os riscos de que a desmaterialização das actividades de ensino e investigação sejam desregulados e se desenvolvam à margem dos Estatutos das Carreiras Docentes e da legislação laboral em geral. É evidente que a desmaterialização do trabalho (teletrabalho) se vai impor nas práticas laborais. Porém, é essencial que os avanços tecnológicos não impliquem retrocessos nos direitos laborais e sociais.
Em termos estratégicos, há que ir além da resolução dos problemas imediatos. A Universidade em Portugal desenvolveu-se de forma notável, nas últimas décadas. O número de estudantes foi multiplicado por quase dois dígitos, a actividade docente está regulada e a generalização dos doutoramentos dotou o país de quadros como nunca teve. De facto, a Universidade portuguesa ocupa hoje uma posição entre as três e cinco centenas de melhores universidades no mundo e, nalgumas áreas específicas, demonstra criatividade, organização e vitalidade equivalentes às das melhores da Europa.
Contudo, esta visão favorável esconde fragilidades estruturais bem conhecidas, mas sistematicamente menosprezadas. A crónica falta de verbas, a burocratização dos processos administrativos e de ensino, a precariedade laboral, a ênfase na massificação e numa performance que se traduz em cifras comparáveis em detrimento do estímulo à reflexão crítica, criativa, inovadora e socrática. Acresce o drama de um Ministério da Ciência, da Tecnologia e do Ensino Superior que oscila entre a sua inexistência e o caricatural, aquando de Governos do PSD-CDS, e o autismo e a falta de visão estratégica, aquando dos Governos PS. Impõe-se mencionar o papel errático e incompetente da Fundação para a Ciência e a Tecnologia enquanto agente de estímulo, financiamento e promoção da excelência científica.
Quando equacionamos a Universidade para a próxima década, há que sermos claros: não será através de aumentos marginais que vamos alterar o panorama hodierno. Há que ter a coragem de aumentar as verbas do OE de modo a que atinjam, em 2030, o dobro da dotação actual. Este aumento deve estar associado a metas e objectivos claros e ambiciosos.
Nas ciências de base, a Física e a Matemática serão essenciais para treinar os futuros cientistas, engenheiros, biólogos e médicos. O investimento deve ser estendido às energias alternativas, para melhoria da performance dos processos já conhecidos e melhor entendimento de soluções que envolvam células de hidrogénio, fusão nuclear, energia geotérmica, etc. É urgente dotar Portugal de meios técnicos para se afirmar na nova tecnologia espacial, através dos micro e nano satélites, da formação intensiva em engenharia electrónica, de telecomunicações e de sensores.
Nesta área, a ênfase deve recair sobre a formação acelerada de grupos de trabalho em vez de entidades burocráticas alienadas da realidade universitária. Há que investir na supercomputação (há passos nesta direcção), na computação quântica, hardware e software, de modo a incorporar no ensino das ciências da computação a mecânica quântica e as suas bases matemáticas. Nas ciências biomédicas, a colaboração com a engenharia, física e matemática deve ser integrada na formação. Os estudantes de medicina e profissionais de saúde devem ser treinados para efectuar diagnósticos, prescrições e intervenções médicas à distância, de modo a que 100% da população tenha assistência médica, 24 horas por dia, durante todo o ano.
Os estudantes de ciências sociais devem poder intervir em questões como a inteligência artificial, formas alternativas de governação e organização social, desmaterialização de procedimentos administrativos e legais, tecnologias blockchain e open access e sistemas de crédito social. Há que formar uma geração de diplomatas, decisores e políticos para actuar num mundo dominado pela Ásia e, em particular, pela China e em contínua crise devido às alterações climáticas. Por isso, impõe-se o ensino da emergente ciência do Sistema Terrestre, bem como treinar os futuros engenheiros em projectos multidisciplinares de mitigação dos riscos.
A nível organizacional, há que condicionar as verbas à formação de grupos de excelência científica e resolver o problema de asfixia financeira de algumas universidades. Há que apostar na especificidade das regiões e nas suas competências tradicionais. Na Universidade dos Açores, por exemplo, fortalecer o Instituto de Investigação em Vulcanologia e Avaliação de Riscos, reunir as competências em actividades associadas ao mar, possivelmente, num Instituto de Oceanografia plural e transversal que possa também associar-se a actividades de observação da Terra do espaço. Ligações com o CIIMar e o IPMA devem ser intensificadas. Considerações semelhantes podem ser estendidas às Universidades do Algarve, da Beira Interior, da Madeira e à UTAD.
Na Universidade do século XXI, todos os alunos devem ter uma formação transversal que englobe o método científico, matemáticas básicas, proficiência computacional, conceitos essenciais de saúde pública, ciência agrária e sustentabilidade, de línguas estrangeiras, de organização política e social e de História Universal.
É justo reafirmar que a Universidade em Portugal contribuiu decisivamente para o desenvolvimento do país; não obstante, o futuro requer compromissos mais ambiciosos para responder às exigências de um mundo em crise e em rápida transformação. Há que dotar as Universidades de meios humanos e materiais numa escala muito maior e fazê-lo através de um crescente diálogo com as empresas, as instituições e a sociedade. Mais do que necessário, é obrigatório e é urgente!