Com os humanos confinados, o canto das aves melhorou

As regras de confinamento para travar a propagação da covid-19 contribuíram para a redução da poluição sonora, o que aliviou a pressão sobre os animais que dependem do som para sobreviver. É o caso dos pardais-de-coroa-branca, uma ave nativa da América do Norte, que moldam o seu canto consoante o ruído de fundo para se fazerem ouvir pelos inimigos ou parceiros.

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Pardal-de-coroa-branca na baía de São Francisco. Atrás é visível a ponte Golden Gate, que atravessa a região Jennifer N. Phillips

Com a obrigatoriedade de confinamento causada pela pandemia de covid-19 houve uma redução drástica do tráfego automóvel em todo o mundo e da consequente poluição sonora. Com isto, a população ficou mais desperta para escutar os sons da natureza. A redução do ruído humano levou as aves da baía de São Francisco, na Califórnia, a adaptarem os seus cânticos, tornando-os mais graves, suaves e com um volume mais baixo, o que melhorou a sua qualidade e permitiu às aves poupar energia para defender o seu território de inimigos e aumentar o potencial de acasalamento. É o que diz um novo estudo norte-americano, publicado esta semana na Science, que avaliou as alterações no canto dos pardais-de-coroa-branca.

Elizabeth Derryberry, autora principal do estudo e investigadora no departamento de Ecologia e Biologia Evolutiva da Universidade do Tennessee (EUA), juntamente com os colegas, tem vindo a monitorizar, há mais de duas décadas, as populações urbanas e rurais de pardais-de-coroa-branca, na área da baía de São Francisco, de forma a avaliar de que forma a poluição sonora afecta o canto destes pássaros.

O pardal-de-coroa-branca, também conhecido como tico-tico-de-coroa-branca (Zonotrichia leucophrys), é uma espécie de ave passeriforme nativa da América do Norte e muito comum na área da baía de São Francisco, um estuário que drena cerca de 40% dos cursos de água da Califórnia. Esta pequena ave caracteriza-se por possuir um rosto de tonalidade cinza, com riscas pretas e brancas na zona superior da cabeça. Diferentes subespécies apresentam cânticos ligeiramente diferentes, conhecidos pela sua suavidade e uma sucessão de “apitos”. 

As aves que possuem territórios de reprodução em áreas com níveis de ruído mais elevados, como é o caso destes pardais, possuem um canto de maior amplitude, uma resposta comum ao ruído, conhecida como efeito Lombard (tendência involuntária para um indivíduo aumentar o esforço vocal quando fala em locais com ruído elevado, para aumentar a audibilidade).

Neste estudo, os investigadores procuraram compreender como estas aves podem alterar o seu canto, após a quebra dos níveis de ruído motivada pela redução do tráfego automóvel na área da baía e áreas circundantes, mais rurais, aquando da implementação das regras de confinamento na Primavera deste ano. Foram comparados registos do canto das aves no período de Abril a Junho de 2015 e de 2016 com gravações feitas nos mesmos locais de Abril a Maio de 2020, ou seja, pouco depois da obrigatoriedade de confinamento no estado americano da Califórnia.

A equipa relata que os pardais deste último grupo, expostos a um ruído de fundo muito reduzido, exibiram reduções nas amplitudes vocais (menor volume) e nas frequências mínimas vocais (tom mais grave), o que levou a um aumento do desempenho vocal e a uma poupança de energia para defesa de território e reprodução. Os resultados revelam a rapidez com que as aves se podem adaptar a ambientes em mudança e sugerem que esta mutação, caso fosse duradoura, poderia levar a outros resultados promissores, incluindo uma maior diversidade de espécies. “Se o ruído antropogénico for reduzido, é possível que espécies que actualmente evitam as áreas urbanas, devido ao barulho, voltem para essas áreas”, conta ao PÚBLICO David Luther, biólogo da Universidade George Mason, na Virgínia (EUA), e um dos autores do artigo.

À BBC News, Elizabeth Derryberry disse que “este estudo mostra que quando se reduz a poluição sonora há um efeito quase imediato no comportamento da vida selvagem e isso é realmente interessante, porque muitas acções que tomamos para tentar ajudar o ambiente demoram muito tempo a ter efeito.”

São Francisco com menos 7 dB no confinamento

Os cânticos destes pardais têm sido registados e estudados desde os anos 70, altura em que o tráfego era muito mais reduzido. Com o passar do tempo, o ruído aumentou e as aves tiveram de ajustar os seus cânticos, da mesma forma que as pessoas têm de falar mais alto numa festa cheia de gente. Num trabalho anterior, esta equipa de investigadores demonstrou que à medida que os níveis de ruído urbano aumentaram na região, principalmente devido ao aumento constante do tráfego, estas aves passaram a ter um canto com frequências mínimas mais elevadas, isto é, um canto mais agudo, e mais alto. Ainda que isto signifique um aumento da distância de comunicação, significa igualmente um menor desempenho vocal, devido à maior energia gasta. Por conseguinte, o stress resultante deste esforço acrescido pode acelerar o envelhecimento das aves e perturbar os seus metabolismos.

Com o confinamento imposto para travar a propagação do novo coronavírus, as cidades ficaram vazias e a população ficou mais desperta para escutar os sons da natureza. Tal como refere o artigo, muitos norte-americanos relataram aos meios de comunicação social que o canto das aves soou diferente durante esta fase. Embora possa ter parecido aos ouvidos humanos que o canto dos pássaros se tornou mais alto, os pardais cantaram de facto mais silenciosamente. A suavidade dos cânticos chegou mais longe, dada a falta de ruído de fundo. Os registos revelaram que os pardais cantaram, em média, 30% mais baixo, comparativamente ao período antes do confinamento – um canto semelhante ao registado na década de 70.

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Jennifer Phillips, uma das autoras do estudo, a registar os níveis de ruído com um sonómetro Jennifer N. Phillips

“As pessoas estavam certas quanto às aves soarem de forma diferente durante o confinamento e preencherem a paisagem sonora, basicamente abandonada por nós”, contou ainda à BBC News Elizabeth Derryberry. “Ao abandonarmos a paisagem sonora, os pássaros mudaram-se para cá [baía de São Francisco] e penso que isto nos diz algo sobre o grande efeito que temos no canto dos pássaros e na sua comunicação, especialmente nas cidades”, acrescentou.

Como avança o estudo, antes do confinamento, a área urbana da baía era em média quase três vezes mais barulhenta do que as áreas circundantes rurais. Durante o confinamento, o ruído de fundo foi drasticamente mais baixo na área urbana, com menos sete decibéis. Relativamente ao canto dos pássaros, a sua amplitude diminuiu cerca de quatro decibéis durante o confinamento. Apesar dessa redução, a distância de comunicação duplicou, enfatizando ainda mais o impacto da poluição sonora na comunicação das aves em condições normais.

Ao PÚBLICO David Luther explica que para a equipa chegar a estes resultados “foi utilizado um gravador digital, equipado com um microfone omnidireccional, que capta de forma uniforme todos os sons emitidos ao seu redor, bem como um medidor de nível de pressão sonora (sonómetro).” “Após a gravação dos cânticos dos pássaros e dos ruídos de fundo, os registos foram analisados estatisticamente.”

A verdade é que o descanso proporcionado pela pandemia foi de curta duração, uma vez que o tráfego e o ruído regressam a pouco e pouco às cidades. Quando as aves começarem as suas “serenatas” de Primavera no próximo ano, os investigadores planeiam estudar de novo os seus cânticos.

Texto editado por Andrea Cunha Freitas

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