Montepio e CCA: a mesma família, dois destinos diferentes
Em pouco mais de uma década, uma sólida e próspera instituição social, quase bicentenária, foi à ruína e está em risco de extinção, fruto de presumível gestão criminosa e utilização para propósitos que lhe eram estranhos, nas barbas da tutela e dos supervisores a quem competiam fiscalizar e proteger.
1. Na semana que findou, cresceu a violência eruptiva no vulcão Montepio, prenúncio da proximidade de explosão avassaladora. O anúncio do fecho de 80 balcões e redução de postos de trabalho que podem ascender aos 900 expôs distensões profundas entre a Comissão Executiva e o Conselho de Administração do banco, com recados e ameaças, através da comunicação social, de despedimento, por parte de Carlos Tavares (chairman) a Pedro Leitão (CEO). Na sombra, o Governo sonda bancos interessados em absorverem o Banco Montepio (BM), com o BCP aberto à fusão. Por outras palavras, estuda-se o fim do banco mutualista, o mais antigo do sistema bancário com 176 anos de existência. “Ninguém estava à espera disto” é o slogan adoptado pelo BM para a sua campanha publicitária, ironia com leitura subliminar apropriada ao ambiente do momento actual, de despedida e acompanhamento à última morada dos que partem inesperadamente.
Na justificação da reestruturação, evoca-se a crise financeira, a evolução tecnológica e o impacto no modelo de negócio, e a pandemia que agrava o contexto económico, induzindo a noção de inevitabilidade, reforçada pelo preconceito de incapacidade e fragilidade associadas à gestão associativa onde se enquadra o mutualismo. É esta a verdade que explica o descalabro do Montepio?
2. Na área financeira, para além do Montepio, opera, sem exuberância e fora das luzes da ribalta, a Caixa de Crédito Agrícola (CCA), cuja evolução comparativa vale a pena atentar.
O mapa demonstra como, nas mesmas vicissitudes e dificuldades de contexto nacional, duas empresas associativas e sociais conheceram destinos diferentes. Nos 16 anos em análise, o activo da CCA quase triplicou e ultrapassou largamente o Montepio. Manteve sensivelmente o número de colaboradores e a sua vasta rede de balcões – a maior do sistema financeiro e a mais próxima dos portugueses –, enquanto a do Montepio entrou no carrosel de crescimento e redução da rede (aquisição do Finibanco) para regressar à mesma dimensão de 2008 (a reduzir com a reestruturação), aumentando, no entanto, o número de colaboradores em mil unidades.
Na comparação da situação líquida, a CCA tem o dobro dos capitais próprios sem DTAs do BM (1.754M vs. 893M) e, desde 2008, valorizou 800M com cerca de 400M de investimento, enquanto o BM devorou perto de 1800M à Mutualista, sem se valorizar. A CCA mantém-se estável, sólida e popular, enquanto o Montepio luta pela sobrevivência.
As empresas associativas são, por natureza, tartarugas, de carapaça endurecida pela sua gestão conservadora, ética, parcimoniosa e sóbria, que as protege das crises. Dão passos curtos e seguros a ritmo constante, que lhes permite percorrer longas distâncias e lhes garante grande longevidade. Não estão, no entanto, livres de predadores astutos e poderosos.
3. A ruína do Montepio deveu-se ao sucesso do seu projecto mutualista, nos anos 90, que no início deste século já tinha capacidade de atrair poupanças na ordem dos 400M anuais, que libertavam 300M/ano, como se ilustra no mapa abaixo.
A acumulação de liquidez da Mutualista – patente na robustez dos depósitos e dos títulos, de 2004 a 2008 – cruzou-se com o país de “tanga” e a desenvolver as maiores tramóias ocorridas no Portugal moderno, na primeira década do século. A história é conhecida, na terra de cegos quem tem olho é rei e centenas de milhões à mão de semear e sem fiscalização, foi mel cheirado por banqueiros, políticos e empresários. Para além do muito já sabido, emerge uma faceta, até agora pouco relevada, que aponta para o aproveitamento da nobreza e da idoneidade do Montepio para dar cobertura a esquemas de lavagem de dinheiro, a exemplo do Banco do Vaticano com o crime organizado.
Neste ciclo de gestão, que em final de 2005 considerou África não estratégica, o Montepio, em 2006, abriu um novo banco em Cabo Verde, destinado exclusivamente a clientes internacionais. Em 2008, negociou a aquisição do Finibanco, com presença em Angola, e adquiriu 1/3 da Nova Câmbios, em Lisboa. Em 2010, o consulado de Singapura passou a funcionar na sua sede, na Rua do Ouro. E, em 2014, projectava abrir novo banco, no Congo (Brazzaville).
Se é difícil descortinar a coerência que liga estes projectos para um pequeno banco mutualista português, encontramo-la de sobra na lógica duma “lavandaria” em expansão internacional – coincidentemente, BES e Montepio viriam a ser os principais beneficiários do “apagão fiscal” das transferências para offshores, entre 2011 e 2015, ocorrido em 2017. Mero acaso.
4. Hoje, a Mutualista está exaurida e sem liquidez para alimentar mais a má gestão do grupo, situação que a pandemia veio agravar, mas também esconder. Para responder aos 3MM de responsabilidades contabiliza 2,6MM em activos, mesmo valorizando as participadas no dobro do seu valor de mercado, o que, em termos reais, deixa a descoberto perto de 2/3 das poupanças dos mutualistas e tem o desemprego a bater à porta do banco.
Em pouco mais de uma década, uma sólida e próspera instituição social, quase bicentenária, foi à ruína e está em risco de extinção, fruto de presumível gestão criminosa e utilização para propósitos que lhe eram estranhos, nas barbas da tutela e dos supervisores a quem competiam fiscalizar e proteger.
Carlos Silva, líder da UGT, expressou o que os portugueses em geral pensam: “O Governo deve olhar para isto com olhos de ver e perceber se há ou não há aqui mão criminosa, que levou a uma gestão danosa”, numa saudável manifestação de que o país não perdeu totalmente a capacidade de se indignar, e que não se conforma com a falta de empenho no combate à corrupção.
A “bolha” do Montepio é um escândalo nacional silenciado pela classe politica e sem interessar o Parlamento, parecendo apostarem no esquecimento, vá-se lá saber porquê, o que dá crédito à máxima atribuída a Tomás Correia: o Montepio dá para todos.
António Costa, Ana Mendes Godinho e Mário Centeno têm um menino nos braços, fecundado por José Sócrates, Vieira da Silva e Vítor Constâncio, e escondido e alimentado por António Costa, Vieira da Silva e Carlos Costa.
Insistentemente tenho questionado quem vai pagar a factura? Os trabalhadores já estão a receber a sua, a seguir serão os mutualistas? Aguardemos as cenas dos próximos capítulos.