Não ao apoio militar a um Governo que despreza o povo
Considerar a prestação de apoio – ainda que apenas na formação e logística – a este Governo corrupto e às suas forças armadas, sem antes exigir uma clarificação total dos ataques contra a população civil em Cabo Delgado, é totalmente inaceitável.
Durante a visita à Guiné-Bissau, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, expressou a sua confiança numa resposta positiva por parte da UE ao pedido de Moçambique de apoiar as suas forças no combate ao terrorismo em Cabo Delgado.
Em entrevista à Lusa no passado dia 24 de Setembro, o ministro dos Negócios Estrangeiros português afirmou estar seguro de que essa resposta será positiva.
“Nós recebemos na União Europeia a carta enviada pela ministra dos Negócios Estrangeiros e Cooperação de Moçambique, é uma carta, aliás, muito clara. Moçambique é muito claro na identificação das áreas em que a cooperação europeia os pode apoiar, designadamente na luta contra o terrorismo em Cabo Delgado, e eu estou seguro de que a União Europeia vai dar uma resposta positiva”, declarou Augusto Santos Silva.
O chefe da diplomacia portuguesa disse também que, na qualidade de ministro dos Negócios Estrangeiros do país que irá exercer a presidência do Conselho da UE a partir de Janeiro, é claro que Portugal contribuirá para que a resposta da UE seja rápida e positiva.
Ao fazê-lo, o ministro português segue o ponto de vista do Governo moçambicano de que a guerra civil no norte do país – que já ceifou 1500 vidas e originou 250.000 refugiados – pode ser atribuída unicamente aos ataques de rebeldes islamitas (ver discurso do Presidente moçambicano Filipe Nyusi perante a UNO VV em 23.09.2020).
Contudo, vários analistas consideram que as causas do conflito se encontram também na enorme pobreza da maioria da população, na desigualdade e na falta de participação nos proveitos da exploração dos recursos naturais (primeiro os rubis e depois o gás). Até mesmo o Parlamento Europeu declarou, já no passado dia 17 de Setembro, numa resolução aprovada por maioria, que considera as causas internas – como a pobreza, a desigualdade, a corrupção e o fracasso do Governo em tornar a riqueza da província acessível à maioria da população – como a razão principal dos incidentes em Cabo Delgado. O Parlamento exortou o Governo moçambicano a fazer tudo o que estiver ao seu alcance para responder às necessidades da população através de reformas urgentes, evitando assim que as pessoas se radicalizem.
No entanto, o Governo moçambicano está a responsabilizar exclusivamente um inimigo externo, tentando assim distrair da questão realmente óbvia de, após 45 anos (!!!) de Governo da Frelimo, Moçambique ainda ocupar os últimos lugares do índice de pobreza mundial (180.° lugar de um total de 189 países), enquanto a riqueza e o poder se concentram nas mãos de uma elite corrupta. Esta elite, juntamente com poderosas empresas internacionais de recursos minerais e gigantes petrolíferas, consegue vender o conto de fadas de que, num qualquer momento futuro, o efeito trickle down irá ocorrer e que, para além da nomenklatura, também a maioria da população virá a beneficiar da exploração de minerais e gás.
Porém, até agora, o que acontece é exactamente o oposto, não tendo a população local beneficiado de forma alguma do investimento estrangeiro de milhares de dólares. Pelo contrário, como se pode ler num relatório da ONG moçambicana “Justiça Ambiental”, por exemplo, um estudo encomendado pela própria multinacional Anadarko já tinha constatado em 2016 que, como consequência do seu projecto de exploração e liquefacção de gás, 550 famílias teriam de ser reassentadas e quase 1000 perderiam o acesso às suas terras de cultivo, enquanto outras 3000 pessoas perderiam o acesso às suas áreas de pesca.
A compensação prometida foi apenas parcial ou mínima, o reassentamento em regiões já povoadas levou a conflitos locais ou ocorreu a grandes distâncias das terras de cultivo. Os pescadores, por exemplo, foram reinstalados a 10 km da costa e queixam-se do manifesto impacto negativo da exploração de gás sobre os recursos piscatórios. Por outro lado, as oportunidades de emprego prometidas na indústria do gás, que é altamente tecnológica, não se concretizaram.
Acresce ainda que as consequências nocivas da extracção e liquefacção de gás para o clima e o ambiente são completamente ignoradas.
Lamentavelmente, tudo isto é praticamente silenciado. Os jornalistas que tentaram trazer estes temas a público foram presos e o jornalista Ibraimo Mbaruco está desaparecido desde o dia 7 de Abril passado.
Joe Hanlon, o jornalista britânico e reconhecido especialista em assuntos moçambicanos, explica, como co-autor do livro Guerra Civil, Paz Civil, que, embora a definição e as raízes de uma guerra civil sejam em geral controversas, elas são quase sempre baseadas em protestos tão profundos que as pessoas se dispõem a arriscar a vida e até a matar. Constata-se também que há sempre actores externos que interferem e que as guerras civis raramente terminam por meios militares. Para uma paz duradoura, é necessário que as razões dos protestos sejam eliminadas.
É pois surpreendente que, apesar dessas lições aprendidas das muitas guerras civis, o ministro dos Negócios Estrangeiros português adira incondicionalmente à leitura do Governo moçambicano, em contradição, pelo menos parcial, com as exigências críticas contidas na resolução do Parlamento Europeu.
O facto de o Governo da Frelimo estar a fazer o possível e o impossível para se manter no poder está mais do que comprovado, seja pelo escândalo da dívida ilegítima de 2 mil milhões de dólares, pela manipulação das últimas eleições (sobre as quais um relatório final dos observadores eleitorais da UE atesta um veredicto desastroso), a intimidação da imprensa, dos juízes e procuradores e das ONGs, os escândalos de corrupção com envolvimento de membros do partido e do Governo a todos os níveis, etc., etc.
A guerra em Cabo Delgado demonstra que a ideologia neoliberal do trickle down, que legitima a ganância de uma pequena elite, falhou e, pelo contrário, agravou a pobreza, com o resultado de que as vítimas estejam dispostas a seguir a via da guerra, a fim de forçar a mudança.
Porém, admitir isto implica também admitir que três décadas de apoio do FMI, da UE e de outros doadores internacionais não melhoraram a situação da população, tendo apenas contribuído para sustentar uma elite da Frelimo no poder, que enriquece à custa do povo.
Agora, com o inimigo consensual do terrorismo internacional, essa elite tenta mais uma vez desviar a atenção dos seus próprios erros, com plena consciência de que estão em jogo poderosos interesses americanos e europeus, cujos governos não abandonarão as respectivas empresas (como a ExxonMobil, Anadarko, Total, ENI e Galp), nem quererão deixar o campo livre para os chineses. Mais uma vez, é o povo de Moçambique que está a ser enganado com umas míseras migalhas.
Apesar de tudo, as coisas tornaram-se menos fáceis de camuflar depois das últimas e ainda não confirmadas notícias segundo as quais as forças armadas moçambicanas foram acusadas em Cabo Delgado de maciços maus tratos à população local. O caso mais grave circulou nos meios de comunicação social, num vídeo em que uma mulher nua é chicoteada por soldados que depois a executam com dezenas de disparos porque é acusada de cooperar com os terroristas. As forças armadas moçambicanas negaram qualquer responsabilidade e descartaram tudo como propaganda da parte contrária, mas recusam-se a cumprir o apelo da Amnistia Internacional para que este caso seja totalmente investigado. Alegadamente, não seriam possíveis investigações na zona de guerra.
Considerar a prestação de apoio – ainda que apenas na formação e logística – a este Governo corrupto e às suas forças armadas, sem antes exigir uma clarificação total dos ataques contra a população civil, é totalmente inaceitável.
É tempo de estar do lado da população moçambicana e deixar de apoiar um Governo sem escrúpulos que, desde a independência em 1975, não conseguiu desenvolver o país em benefício do seu povo.