O casaco de Baudelaire
Este texto integra o projecto Aproveitando uma aberta — Quatro monólogos para quatro autores em quatro divisões da casa, da autoria de Madalena Alfaia, que deu origem a quatro vídeos com realização de João Gambino (coprodução Museu de Lisboa / EGEAC). Os vídeos podem ser vistos online, nas redes sociais, e até 7 de Novembro no Palácio Pimenta, em Lisboa. Nas próximas semanas publicaremos o que Jacinto Lucas Pires e Madalena Alfaia escreveram para Rita Durão e David Pereira Bastos. Na semana passada lemos o monólogo de Matilde Campilho para Vítor D’Andrade.
Quando saímos do gabinete de Coordenação Educativa do Sindicato com as credenciais na carteira foi um dos dias mais felizes das nossas vidas. Conhecíamo-nos há mais de vinte anos — desde crianças — e namorávamos há seis. Íamos casar e queríamos abrir um negócio juntos. Éramos jovens e para lá do horizonte jazia o continente resguardado do futuro, virgem como uma floresta sul-americana protegida por eco-fascistas alemães. Como todos os jovens, o que nos sobrava em sonhos faltava-nos em dinheiro. Mas não desanimámos. Ainda muito imberbes nos meandros do mundo dos adultos e da sua teia impenetrável de regras, decidimos dedicar duas horas de cada dia a tentar perceber na internet qual a melhor forma de abordar um banco para pedir um empréstimo. A opinião dos especialistas, desde os financeiramente conservadores até aos mais atrevidos, era unânime: os bancos, imunes aos mais legítimos entusiasmos pessoais, eram sensíveis apenas à linguagem dos números: tínhamos de apresentar um plano de negócios capaz de traduzir a certeza dos nossos corações numa fórmula de resultado positivo. Eu debruçava-me com respeito e afinco sobre aquele arrazoado confuso de algarismos multiplicando-se por tabelas como pipocas com o cio. O F não (eu chamava-lhe F quando estava nervosa; pronuncia-se “fê”, como no alfabeto daquelas crianças que nunca votarão à esquerda). O F intervalava as duas horas com idas à casa de banho suficientes para um médico lhe diagnosticar hiperplasia da próstata precoce. Bufava, arfava, era-lhe insuportável a ideia de perder tempo a verter para a linguagem matemática aquilo que no coração dele não apresentava qualquer dúvida. Eu não lhe levava mal: ele não tinha nascido para aquilo. Desiludido e envergonhado com a sua incapacidade para a mais simples aritmética, confessava-me: “Pombo anão voa rente ao chão.” Eu sabia, e escusava-me a comentar. Pegava-lhe na mão e levava-o para a rua, para contarmos juntos as motas que passavam.
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