As noites serão sempre nossas?
No actual contexto de medo e incerteza, a noite voltou a ser olhada com renovada desconfiança. Tentam encontrar-se bodes expiatórios para justificar o aumento dos casos de infecção por covid-19 e essa culpabilização recai sobre os suspeitos do costume.
Já passaram seis meses. A noite é agora silenciosa e contida. As bolas de espelhos reflectem o escuro e as pistas vazias. As ruas ocupam-se de mesas de esplanada com jantares e acepipes que tentam prolongar o convívio e ter desculpa para beber mais um copo. As cidades deixaram de ter oferta cultural 24/7. Já não há diversidade. O lazer nocturno teve de ser reinventado, ou melhor, ajustado. Agora ou jantamos sentadas/os ou conversamos de pé, na rua e com o devido distanciamento. Mesmo assim, temos de planear com antecedência, reservar mesa e sair munidas/os de máscara e álcool gel. Já não há espaço para o impulso nem para o improviso. O convívio mais desinibido é agora de pequena escala, privado e circunscrito aos nossos grupos de amizades. A festa faz-se em casa. Por agora é o que tem de ser. Estamos todas/os disponíveis para nos adaptar enquanto esperamos ansiosamente pelo próximo Verão e pela possibilidade de esticar novamente as pernas numa pista de dança (será?). Mas será que no mundo pós-covid haverá oferta cultural para nos animar até de madrugada?
Para quem trabalha à noite, o esforço de adaptação é muito maior que o nosso. Fecharam as portas sem aviso de abertura à vista. Alguns optaram por se “converter” em restaurantes ou snack-bar. Qual era a alternativa? Todos, em geral, sabem que a noite que acontece dentro de portas acarreta riscos de infecção difíceis de controlar. E (quase) todos aceitam esta reabertura condicionada. Fazem-se contas às perdas económicas, aos postos de trabalho que se tornam obsoletos, às perdas culturais… O futuro é incerto, mas há que seguir. Muitos/as empresários/as e profissionais têm vindo a organizar-se em colectivos e a ocupar espaços mediáticos de formas mais ou menos criativas para se queixarem da falta de diálogo e de apoio a este sector. Exemplo disso é a recente rede Circuito que sob o mote #aovivooumorto chama atenção para as possíveis repercussões dessa desatenção para o sector das salas e clubes com programação própria de música ao vivo e todo o ecossistema que nutrem.
Para além das restrições impostas para conter o malfadado vírus, o lazer nocturno enfrenta outra grande ameaça. No actual contexto de medo e incerteza, a noite voltou a ser olhada com renovada desconfiança. Tentam encontrar-se bodes expiatórios para justificar o aumento dos casos de infecção por covid-19 e essa culpabilização recai sobre os/as suspeitos/as do costume. Surge então a culpabilização e o escrutínio dos comportamentos de determinados grupos sociais, entre os quais os/as jovens. Recai sobre eles/as a velha crença de que são irresponsáveis e descontrolados/a sem considerar o facto de que a recente crise também afectou os seus estilos de vida de forma abrupta e os/as encheu de incerteza em relação ao seu futuro. Se antes os/as acusavam de viverem online, agora impõem-lhes essa opção como sendo a forma mais responsável de socializarem e interagirem com os/as seus/suas pares. No entanto, esta visão “adultocêntrica” da juventude desconsidera a sua capacidade de auto-regulação e adaptação às novas circunstâncias. O que é que leva tantas pessoas a crer que os/as jovens não vão cumprir as novas medidas de protecção? Ou melhor, o que é que as leva a acreditar que as pessoas adultas são mais responsáveis no cumprimento das novas regras para a prevenção da infecção por covid-19 do que as mais jovens?
Este estigma é agravado se as formas de socialização juvenil (e não só) acontecerem à noite. Reforça-se assim a visão da noite enquanto espaço privilegiado para o descontrolo, a desviância, a transgressão e a… infecção. A mesma narrativa moralista (agravada, claro, por motivações políticas) recaiu sobre a Festa do Avante!, desconsiderando os seus mais de 40 anos de experiência na organização de um evento de grande dimensão.
Mas afinal o que ficamos a perder se o lazer nocturno desaparecer?
Iremos perder uma área cultural, social e económica fundamental para a vitalidade, criatividade e inovação das cidades. Iremos perder capital artístico, porque num cenário de desinvestimento generalizado muitos/as artistas se verão obrigados/as a atirar a sua arte à fogueira. Iremos perder espaços de socialização, recreação e hedonismo ímpares por nos permitirem desanuviar do peso da formalidade e responsabilidade da nossa vida quotidiana. Ficaremos mais pobres e por isso o tom é de urgência.
Obviamente que o lazer nocturno antes da pandemia não era isento de críticas. Pelo contrário, associado a um boom turístico descontrolado contribuiu para a ocupação massificada de determinadas zonas das cidades à noite, piorando as condições de quem lá residia. No entanto, esses problemas denunciavam também a falta de uma estrutura de governança do lazer nocturno, à semelhança do que já acontece noutras cidades a nível internacional. Agora, é tempo de ultrapassar visões simplistas e de pensar de que forma se podem amortizar os impactos da presente crise sobre este sector e impedir a sua extinção. Tal como a VibeLab advoga, é tempo também de repensar o futuro. Talvez esta seja uma oportunidade de pensar que tipo de noite queremos nas nossas cidades, e de que forma poderemos maximizar a sua segurança, flexibilidade, adaptação e valor cultural.
*A redacção deste artigo baseou-se no trabalho de reflexão, investigação e discussão conjunta destas temáticas com várias/os colegas da Kosmicare, do LxNights, do MIL e de representantes da rede Circuito.