Amália, na Academia – louvor e justificação

A Academia das Ciências de Lisboa assinalou esta semana o centenário de Amália com uma homenagem, numa sessão especial.

O Fado na sua conceção intemporal, na sua expressão literária ou nas derivas populares associadas à realidade social e cultural tem sido objeto de estudos eruditos, de ensaios críticos ou de obras de criação de muitas personalidades que pertenceram – e pertencem – à Academia das Ciências.

Os exemplos multiplicam-se até chegarmos a Amália Rodrigues: Teófilo Braga, numa interpretação das raízes do povo português (que antecedeu as investigações antropológicas e etnográficas de José Leite de Vasconcelos), deu honras de transcrição integral dos versos recolhidos na tradição oral (“Chorai artistas chorai …”) que lamentam a morte da Severa. Henrique Lopes de Mendonça enalteceu o Fado e introduziu-o (com a música de Alfredo Keil) nas estrofes de A Portuguesa que a Constituição da República, em 1911, transformou no Hino Nacional. Eça de Queiroz situou Lisboa na génese da invenção do Fado e Teixeira de Pascoaes pronunciou-se acerca das modalidades do Fado em várias localidades geográficas.

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Amália no Olympia de Paris, em 1985 MUSEU DO FADO

Logo no início do século XX, Júlio Dantas escreveu A Severa. Foi a reconstituição para o teatro (e depois para um romance) da vida – assim caracterizou – de “uma flor pura, desabrochada na lama”, que se evidenciou a cantar o Fado, na Mouraria. “Tinha o orgulho de ser a primeira, de não ter um ódio de ninguém, de ser feliz com a sua liberdade, o seu Fado, o seu amor ao Sol”. Seduziu o conde de Marialva e outros “fidalgos turbulentos que corriam a súcia à força de murro e venciam a vida à força de alegria”. Estreada, em 1901, Ângela Pinto foi a primeira protagonista da Severa. Em 1955, no Teatro Monumental, Amália Rodrigues foi a última protagonista que a representou. Ficou a ser uma das peças de Júlio Dantas de maior audiência.

Fernando Pessoa, ao depor num inquérito, no período em que escrevia os últimos poemas da Mensagem, definiu o Fado antes dos organismos institucionais que o elevaram a canção nacional. “O Fado – salientou Pessoa – não é alegre nem triste. Formou-o a alma portuguesa, quando existia e desejava tudo sem ter força para o desejar”. António Ferro, um dos fundadores com Fernando Pessoa da revista Orpheu, ao desempenhar funções oficiais, nas décadas de 40 e 50 e ao fazer a reabilitação do Fado, promoveu a carreira nacional e internacional de Amália.

A saudade – uma das componentes no Fado e da identidade portuguesa – foi aprofundada por outros académicos: António Quadros, Afonso Botelho e António Braz Teixeira. E também Urbano Tavares Rodrigues, que prefaciou e selecionou a antologia A Saudade na Poesia Portuguesa. Mas no ensaio crítico A Mitologia do Fado – fortemente marcado pelo magistério cívico de António Sérgio – apresentou António Osório as conotações negativas do Fado sempre que faz a apologia do vício e do crime.

A polémica desencadeada quando Amália resolveu cantar Camões provocou uma guerrilha de intelectuais. Assistiu-se à contestação veemente de José Gomes Ferreira e José Cardoso Pires; à defesa calorosa de David Mourão-Ferreira, Alexandre O’Neill e Hernâni Cidade. Surgiu, entretanto, o louvor de Amália por Augusto de Castro. Era, na época, o histórico diretor do Diário de Notícias e o mais antigo sócio efetivo da Academia das Ciências. Decidiu intervir num editorial com o título Cantar Camões.

Para surpresa de muitos (que não conheciam a rebeldia que se ocultava em face de conveniências políticas), Augusto de Castro considerou que a obra de Camões não se poderia restringir às intervenções circunspectas das Academias. O génio de Amália (“voz do mar e do vento, voz de um povo que é Portugal a andar pelo mundo”, nas palavras de Augusto de Castro), ao interpretar poemas e um soneto de Camões, estabelecia a aproximação direta com todos os públicos. E de tal modo que o próprio Camões, se fosse vivo, seria o primeiro a congratular-se com a expansão que Amália atribuiu à sua poesia. Foi o ponto final na controvérsia.

Poetas tão diversos que pertenceram e pertencem à Academia das Ciências ganharam maior amplitude através da voz de Amália. Menciono, por exemplo, David Mourão-Ferreira, Manuel Alegre, Teresa Rita Lopes e Vitorino Nemésio. Outros académicos, como Fernando Dacosta, enquadraram Amália na sociedade em que viveu e atuou, recorrendo, com a garra do repórter, ao impacto dos testemunhos. Ou, então, Agustina Bessa-Luís que retratou Amália cruzando, nas suas habituais digressões, os demónios e os anjos que reaparecem nas sombras e claridades da Sibila. A presença destes e outros autores (com ou sem Amália) encontra-se registada pelo académico Luiz Francisco Rebello na História do Teatro Português.

Referencia obrigatória é a de Eduardo Lourenço. Tudo que escreveu sobre Amália está sistematizado por João Nuno Alçada na organização das Obras Completas. Para o livro de Jean-Jacques Lafaye Amalia florilège redigiu Eduardo Lourenço um prólogo que intitulou – Saudade, melancolia feliz. No manuscrito, guardado no espólio na Biblioteca Nacional, acrescentou: “À memoria de Teixeira de Pascoaes”.

Julgo que será, ainda, de recordar que – no dia da morte de Amália – também Eduardo Lourenço declarou perentoriamente: “Amália morreu no seu século. Não passou desfigurada para um tempo que não era o seu. Morreu sem sucessores. Caberá a outros estudiosos esclarecer se Amália ficou enclausurada no seu tempo ou se conseguiu alcançar projeção e continuidade no futuro.

Uma coisa, porém, é certa: Aquilino – que integra o património da Academia das Ciências – ao evocar Lisboa chamou-a “cidade de Ulisses e de Amália”. ​Já neste século, por uma daquelas coincidências que nos surpreendem e quando menos se espera, Amália e Aquilino, sem nunca terem falado um com o outro, ficaram na mesma sala do Panteão Nacional.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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