Nove pontos sobre hidrogénio e precaução
A opção pelo megaprojeto de Sines deixa o país ancorado a um modelo de exportação para a Holanda com baixo valor acrescentado.
1. O hidrogénio verde, produzido com recurso a eletricidade de fonte renovável, é uma tecnologia com futuro, que pode ajudar ao cumprimento de objetivos ambientais e económicos, melhorando a integração da energia solar e eólica, bem como a eficácia nos investimentos na rede, reduzindo as necessidades de reserva (hoje supridas pelo gás e pelas barragens).
2. A estratégia do Governo prevê que a futura produção de hidrogénio verde se destine, em partes iguais, ao consumo interno e à exportação. É essa estratégia exportadora que aponta para o “projeto-âncora” de Sines 600 dos 900 milhões de financiamento público previstos.
3. Sines implica a concentração de avultados investimentos já em 2022. Ora, a Agência Internacional de Energia (AIE) prevê que o custo dos eletrolisadores cairá 70% ao longo dos próximos 30 anos. Nesta fase de amadurecimento da tecnologia, faria mais sentido investir em projetos mais pequenos, que permitissem avanços em investigação e desenvolvimento e um faseamento que contivesse custos tecnológicos e de subsidiação.
4. Um dos argumentos mais ouvidos em defesa do megaprojeto de Sines é que a fatia de leão será financiada com fundos europeus. O reverso da medalha é que há “custos de oportunidade": os recursos assim consumidos poderiam ser alocados a outras prioridades sob outra estratégia energética e industrial.
5. A opção por um megaprojeto obedece à transição energética europeia e deixa o país ancorado a um modelo de exportação para a Holanda com baixo valor acrescentado. No documento da estratégia holandesa para o hidrogénio, pode ler-se: “A economia holandesa tem uma grande percentagem de indústrias de energia intensiva. Para reter este tipo de indústrias na Holanda, é crucial que as empresas possam adquirir combustíveis verdes a preços internacionalmente competitivos”. Para cumprir este objetivo – reter as indústrias intensivas na Holanda –, Portugal coloca a sua energia solar à disposição da produção do novo “combustível” daquelas indústrias. Venderemos a nossa produção renovável como Bruxelas quer, desistindo de a integrar numa estratégia nacional de industrialização sustentável.
6. Quanto ao consumo interno, a falta de competitividade dos preços do hidrogénio verde vai manter-se pelo menos até 2050, de acordo com a AIE (cf. Energy Technology Perspectives, 2020). A adaptação a esta tecnologia implica uma longa “fidelização” das indústrias e transportes. Sem duradoura subsidiação, não se verificará o consumo interno de hidrogénio verde que a estratégia do Governo prevê.
7. Em menos de um ano – da entrega à Comissão Europeia do Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC) até à Estratégia para o Hidrogénio Verde –, o Governo multiplicou por dez a parte da produção eólica e solar a dedicar à produção de hidrogénio verde. Só não explicou ainda como se retira do mercado um terço de toda a produção renovável do PNEC sem aumentar as emissões nacionais.
8. Com o preço da eletricidade solar a cair, esta sua captura pela produção de hidrogénio contribuirá para a subida dos preços da eletricidade cobrados aos consumidores e às indústrias que não dependerem de hidrogénio verde. Mesmo que não venha a haver subsídios incorporados nas tarifas, como promete o secretário de Estado da Energia, os consumidores pagarão assim parte dos custos desta opção.
9. A estratégia exportadora tem consequências de grande alcance e implica relevantes custos económicos e ambientais. Uma estratégia responsável deve fazer escolhas transparentes quanto à proporção, à forma e aos mecanismos de desenvolvimento da produção de hidrogénio verde. Sem a pública quantificação dos impactos desta estratégia no setor elétrico e nos objetivos ambientais do PNEC, o debate é inconsistente. Recomenda-se o princípio da precaução.
Miguel Heleno é investigador em sistemas de energia no Laboratório Nacional de Berkeley, Califórnia
Jorge Costa é deputado do Bloco de Esquerda
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico