Interesses
Ana Gomes escolheu há muito de que lado está em relação ao PS. Se este, por absurdo, lhe manifestasse apoio, não surpreenderia que Ana Gomes invocasse direito de veto sobre quem seria magnanimamente autorizado a aparecer ao seu lado.
Compreendo sem reservas a posição que os órgãos dirigentes do PS adotaram no tocante às eleições presidenciais. O PS é o único grande partido português que em várias ocasiões esteve em risco de se fraturar irremedivelmente por causa da eleição do Presidente da República. Em três, pelo menos. Em todas elas, Mário Soares teve um papel central. Em todas elas, Mário Soares teve razão.
Mas Ana Gomes está muito longe de ser Mário Soares.
Nunca o fundador do PS faria sua a estratégia ou a missão de criticar sistematicamente o PS, como Ana Gomes fez ao longo de anos (com convenientes interregnos, convenha-se). Nunca Mário Soares dividiria o Mundo em “defensores de interesses” (outros, noutras geografias, dirão “castas” ou “elites”) e o povo ou separaria entre votos bons e votos maus. Mário Soares era um democrata genuíno. Ana Gomes escolheu há muito de que lado está em relação ao PS. Se este, por absurdo, lhe manifestasse apoio, não surpreenderia que Ana Gomes invocasse direito de veto sobre quem seria magnanimamente autorizado a aparecer ao seu lado.
Isto só não arruma o assunto porque ainda falta saber qual a atratividade eleitoral do ticket Ana Gomes, Manuel Alegre, Daniel Adrião e a autodenominada ala esquerda do PS, liderada por Pedro Nuno Santos. Mas para isso temos de esperar pela noite eleitoral.
Tal como reportada pela comunicação social, da reunião da comissão nacional do PS brotaram argumentos para não votar no atual Presidente da República, se este decidir recandidatar-se.
Há um argumento que me intriga, porque nele não deteto o genoma de inteligência política que reconheço ao seu autor: o de que o Presidente agiu maquiavelicamente aquando da indigitação do atual Governo ao não obrigar o primeiro-ministro e o PS a formalizarem acordos escritos com os partidos à sua esquerda, ao contrário do que fez Cavaco Silva.
Vou deixar de parte o lado freudiano da censura ao pai omnipresente e possessivo que não foi suficientemente firme na imposição da coisa certa. E muito menos interessa por agora discorrer sobre quão enviesada, do ponto de vista da teoria da liberdade, é a crítica dirigida a outrem pela simples circunstância de não nos ter obrigado a fazer alguma coisa para a qual não tínhamos vontade, interesse ou possibilidade.
Concentremo-nos, pois, nos méritos do argumento. Com a omissão, o Presidente pretenderia fomentar instabilidade que lhe permitiria ocupar o centro do lugar político. Mas se assim tivesse sido, certamente que o Presidente não estaria orgulhoso da sua capacidade de previsão. Cercado pelo fanatismo do Bloco de Esquerda e dependente da rigidez tática do Partido Comunista em matérias e pastas delicadas, o Governo necessita do Presidente. Em contrapartida, o Presidente não necessita do Governo. É fácil adivinhar, nessas circunstâncias, quem é que estará menos feliz com o casamento forçado.
Tenho outra explicação para a circunstância de nem o primeiro-ministro nem o Presidência terem apostado tudo nos acordos escritos com os Partidos da esquerda: simplesmente, não havia maneira de o país pagar o preço. Isso já é visível neste segundo orçamento do Governo e ficará cada vez mais patente.
O tiro acerta, na verdade, ao lado. Aliás, bastante ao lado, porque o real destinatário é o líder do PS e primeiro-ministro. Isso é preocupante. Com os problemas que o país tem não interessa nada que a principal oposição venha de dentro do próprio Governo.
Foram também agitados argumentos ideológicos. Esses, sim, saltam à vista e são reais. Todavia, se o exemplo demonstrativo do afastamento ideológico entre o PS e o atual Presidente é a posição sobre o SNS — nomeadamente sobre o papel dos “privados” — é mal escolhido. Quando recordo a posição de Governos do PS, de primeiros-ministros do PS e de ministros da Saúde do PS encontro muitos que não estão muito longe do que o atual Presidente tem expressado sobre o assunto.
Mas os argumentos ideológicos são ponderosos e acredito que muitos eleitores do PS encontrarão aí obstáculos sérios. No meu caso, uma ligação pessoal de várias décadas na Faculdade de Direito de Lisboa mitiga esses obstáculos. Mas para muitos o Presidente terá de fazer um esforço significativo para demonstrar que no seu segundo mandato, se se candidatar e se o obtiver, a sua agenda não consistirá em impor qualquer projeto de base ideológica ou pessoal e continuará a ser a defesa da estabilidade política e da Constituição.
Se começasse já a fazer isso, demarcando-se do incrível abraço entre o PSD e o Chega nos Açores daria passos de gigante nesse sentido.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico